No Algarve, a guerra é mansa

Que a visita do nosso Primeiro-Ministro ao Algarve, na passada sexta-feira, adivinhava alguma componente lúdica, era previsível. O tema era, […]

Que a visita do nosso Primeiro-Ministro ao Algarve, na passada sexta-feira, adivinhava alguma componente lúdica, era previsível.

O tema era, afinal, propício: vir abraçar árvores com crianças, como afirmação de verde amor pela Natureza, e participar na liturgia da febre roçadora de mato e podadora de árvores pela raiz, como celestial salvação do Inferno dos incêndios, ainda por cima celebrada por gente a quem, afinal, o Governo nem sequer pagou aquilo com que se comprometeu enquanto prioridade estratégica.

Enfim. Não desiludiu.

Abordar a vida de forma ligeira é positivo, mas numa das regiões do país mais assoladas por assimetrias territoriais e por abandono e desumanização do interior, que constitui o principal motor de desordenamento e descaracterização da paisagem que alimenta os grandes incêndios, impunha-se, como se impõe desde há décadas, muito mais.

Não é desdenhar da visita ou destas medida​s​ “marcelista​s”, é apenas aspirar que, ao afecto, se junte por fim o intelecto, no desenho de acções efectivas e substanciais para resolver os problemas estruturais e estratégicos do Algarve​.

Houve, ainda assim, direito a um brinde.

No meio do esverdeado amor, o Primeiro-Ministro revelou uma negra paixão, finalmente afirmando o apoio do Governo a uma eventual exploração de hidrocarbonetos no Algarve, dentro de uma lógica de redução da factura que inevitavelmente pagamos pelo consumo de combustíveis fósseis de que, inegavelmente, não conseguimos, para já e num futuro imediato, escapar.

​Concorde-se ou não com esta visão, que é legítima e aborda uma questão factual, temos finalmente o fim da farsa que há muito rodeava este tema, e uma posição concreta a partir da qual discutir. Ou melhor, a partir da qual se poderia discutir, começando pela recomendação de leitura dos contratos assinados e das inexistentes mais-valias inerentes – não, nosso Primeiro, o petróleo não fica em Portugal, nem vai filantropicamente ser oferecido ao País (mesmo que fosse, o senhor tributava-o à bruta e ao Zé Povinho adiantava zero) e não nos vamos todos tornar Xeques das Arábias – até outras formas de abordar o problema, mas é sabido que nada disso interessa, pois as vozes que interessa escutar já falaram nos bastidores, e tudo o resto é ruído de fundo.​

​Isto já era, de resto, esperado, pelo que não surpreende grandemente. Já a placidez revelada pelo espírito guerreiro do Algarve é uma desilusão. É que, face à confirmação do que anteriormente foi classificado, até pelos autarcas algarvios, como “declaração de guerra” à região, não há registo de uma só figurativa pedra atirada, de um metafórico tiro, de uma praga alvoreira que fosse.

No fundo, tanta bravata não passou de um “vocês deslarguem-me!”.​

Seja por​que a fidelidade à cor partidária ​fala mais alto ​do que ​a​ palavra proferida, ou porque as guerras por cá são mais à moda do Solnado, a festa seguiu bonita, “pá”, não sendo beliscada pela beligerante declaração de António Costa.

Mais vale, portanto, começarmos a acrescentar narizes vermelhos nos logótipos que por aí se vêem colados, real ou virtualmente, recusando educadamente o “petróleo” no Algarve, já que são mais caracterização circense do que pintura de guerra.

Mentalizemo-nos, povo cuja voz não vale nada, que o regime quer o Algarve como palco de exploração de hidrocarbonetos, e o poder, nas suas diferentes escalas, não vai defender a região.

Na nossa confirmada insignificância, seguimos entregues à própria sorte. E o pior é que não nos vai servir de lição.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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