Crónicas do Sudoeste Peninsular: As instituições do ensino superior como instituições-plataforma

Num contexto global marcado por grandes transições – ecológica, demográfica, digital, migrações – nenhuma área da sociedade atual ficará imune […]

Num contexto global marcado por grandes transições – ecológica, demográfica, digital, migrações – nenhuma área da sociedade atual ficará imune a uma transformação de grande alcance e impacto.

No caso da organização estado-administração acreditamos que uma grande transformação acontecerá no plano da cultura político-organizacional a pretexto, justamente, da transformação digital que já aí está e que terá um crescimento exponencial no futuro próximo.

Agora que se discute a reprogramação do quadro comunitário 2014-2020 e as novas orientações estratégicas no horizonte 2030, importa retomar toda a discussão em redor do modelo de desenvolvimento e a valorização do interior em novos moldes.

Com efeito, dado o carácter exponencial das tecnologias da informação e comunicação, programar e planear para uma década é uma verdadeira aventura que requer muita clarividência e discernimento por parte dos atuais policy-makers.

Neste contexto, e na próxima década, trata-se de providenciar acessibilidade digital, autoestradas da informação, cidades inteligentes, uma nova classe empresarial e novas cadeias de valor e, bem assim, novos mercados de trabalho a partir de plataformas digitais ao serviço dos cidadãos e dos territórios.

Neste sentido, as organizações mais visadas são, sem margem para dúvida, as autarquias locais e as comunidades intermunicipais, as instituições de ensino superior e as associações empresariais que se podem constituir, em primeira instância, como entidades ou instituições-plataformas com implantação territorial.

 

A emergência das instituições-plataforma no horizonte 2030

E no horizonte 2030, o que se pode esperar da emergência das instituições-plataforma em consequência de uma mudança de cultura organizacional na estrutura e funcionamento do estado-administração que ainda temos?

Numa primeira fase é muito provável que a modernização administrativa seja confundida com a modernização informática. Esperemos, porém, que, numa segunda fase, a inovação e a cultura digital nos tragam a reforma das administrações com uma cultura politica mais colaborativa e participada e sob a forma de instituições-plataforma.
Nesta matéria, o passivo acumulado é relevante.

Nos últimos 30 anos, usámos com frequência crescente serviços especializados em regime de outsourcing, que, gradualmente, foram desclassificando os serviços próprios do estado-administração e os perfis profissionais da função pública, ao mesmo tempo que o lobbying corporativo ia capturando e esvaziando as principais funções técnicas do estado.

No mesmo período assistimos ao envelhecimento da função pública e ao congelamento de carreiras e remunerações. Não admira, portanto, que não estejam reunidas as condições sociais e políticas para acolher uma nova cultura organizacional que põe em causa a lógica dos direitos adquiridos e a segurança das carreiras da função pública.

Acresce que, uma nova cultura organizacional baseada em “plataformas colaborativas com a multidão” põe em causa não apenas as missões clássicas do estado-administração como, também, o próprio perímetro da ação administrativa do estado e, ainda, a própria noção de “função pública” tal como elas são convencionalmente conduzidas e reproduzidas no modelo silo industrial, para além de implicar muito mais investimento na cobertura digital do território.

Um dos aspetos centrais da nova cultura organizacional colaborativa e participativa é o grau de literacia digital da população em geral para lidar com uma nova geração de “serviços ao público”. Não me refiro à manipulação de telefones inteligentes e outros dispositivos, reporto-me a questões de cultura digital que implicam a coprodução de “serviços ao público” em vez de “serviços públicos convencionais”.

Esta transição da cultura informática para a cultura digital e organizacional é plena de consequências sobre o sistema de educação e formação em geral e esta mudança precisa de ser assumida com rigor e frontalidade.

 

A abertura dos dados públicas e a economia do Big Data

A cultura organizacional das instituições-plataforma depende diretamente do “acesso livre, sob certas regras e condições” aos dados públicos detidos pelas diversas estruturas setoriais do estado-administração. Desde logo, acesso livre horizontal por parte de todos os setores públicos, depois acesso livre, sob regras e condições, a outros atores e agentes, e desde que a transparência dos dados públicos não afete a privacidade de informação cedida pelos particulares.

A abertura dos dados públicos visa criar uma grande zona de interface com a sociedade civil e ser a base e o pretexto que faltavam para fazer emergir as instituições-plataforma, em múltiplos modelos e formatos de interação colaborativa e abrindo o caminho para novas categorias de bens e serviços, como os “comuns colaborativos”, em regime de coprodução com o cidadão-utente.

Esta abertura à multidão dos dados públicos precisa de ser acompanhada de incentivos à inovação no interior da própria organização administrativa, de modo a estimular a criação de núcleos de inovação internos à administração que poderão desenvolver parcerias com start up exteriores à administração. Estes núcleos de inovação e estas parcerias devem ser coadjuvados por uma incubadora pública e espaços de coworking, com o objetivo de criar um ecossistema favorável para as centenas de start up que emergirão como extensão de serviços públicos.

Finalmente, a política de administração aberta significa, ainda, uma pequena revolução na forma de fazer política pública e regulação de política pública e implicará necessariamente: cobrir digitalmente todo o território, conectar todos os cidadãos, cumprir um programa de literacia digital, atribuir uma identidade digital aos cidadãos, criar regras para a proteção de dados pessoais, definir as condições e os termos para a cogestão dos bens comuns colaborativos, assim como atribuir uma licença colaborativa para a sua utilização ulterior. Estas serão algumas variáveis essenciais para a política regulatória das instituições do estado-plataforma.

 

As instituições de ensino superior como instituição-plataforma

Não obstante as transformações já ocorridas na nossa sociedade, o modelo industrial ou modelo silo continua ainda a dominar a nossa cultura político-organizacional. Porém, devido às grandes transições que irão marcar o futuro próximo, é praticamente impossível às instituições de ensino superior escapar a uma profunda transformação das suas missões, funções, estrutura, processos e procedimentos.

Devido à sua especificidade própria, quer em termos de ocupação do território (em cada capital de distrito há uma instituição de ensino superior) quer do networking dos seus subsistemas de ensino, investigação e desenvolvimento, as instituições de ensino superior estão particularmente vocacionadas para poderem funcionar como instituições-plataforma de excelência.

Vejamos, mais de perto, algumas características dessa organização-plataforma, tomando como referência a nossa própria realidade do ensino superior.

– Em primeiro lugar, a universidade será cada vez mais uma organização policontextual, poliárquica e interpares (peer to peer), funcionando em canal aberto com a multidão.

– Em segundo lugar, a universidade será cada vez mais uma placa giratória de problemas, projetos e colaboradores que interessam às diferentes comunidades de cidadãos, donde a necessidade de ser dotada de uma grande agilidade organizacional.

– Em terceiro lugar, a universidade é uma organização aberta ao mundo, partilhando o conhecimento e o financiamento com a multidão-plataforma, em múltiplas formas e formatos de crowd sourcing, crowd learning e crowd funding, donde a importância de dedicar uma especial atenção à sua política comunicacional, por um lado, e engenharia financeira, por outro.

– Em quarto lugar, a “universidade é cada vez mais univercidade”, isto é, a universidade deve fundir-se cada vez mais com a cidade e os seus problemas, sobretudo, numa ótica crescente de smart city.

– Em quinto lugar, a “universidade é cada vez mais pluriversidade”, isto é, não há áreas de trabalho estranhas ou exteriores à universidade-plataforma na exata medida em que a universidade se alimenta desse banco de problemas que é a diversidade de situações e oportunidades.

– Em sexto lugar, a universidade é cada vez mais uma “plataforma giratória formativa” em jeito de lifestyle learning, não apenas nas áreas mais técnicas, mas, sobretudo, nas áreas mais criativas e artísticas, enquanto instrumento privilegiado de gestão de programas de envelhecimento ativo e de acordo com o princípio de que não há aposentados ou reformados em matéria de capital humano.

– Em sétimo lugar, a organização da universidade-plataforma deverá seguir, em minha opinião, a regra do terço: um terço de formação, presencial e à distância, um terço de problem-solving e um terço de investigação-ação.

 

A universidade/politécnico como meta-plataforma regional

Estas serão as balizas para as novas missões da universidade que, para o efeito, deverá encontrar um novo ponto de equilíbrio interno, orgânico e funcional, de acordo com o princípio da agilidade organizacional.

Nos termos que referimos, pelos saberes e competências que reúne e convoca, a universidade ou instituto politécnico está em excelentes condições para se converter numa espécie de meta-plataforma regional, tanto mais quanto ocupa o território nacional numa base ou rede praticamente distrital.

Quer dizer, a universidade/politécnico não só constitui a sua própria plataforma de ensino-investigação-extensão como se institui em meta-plataforma da sua região, estabelecendo, se quisermos, uma espécie de Big Data Regional para o seu território.

Com efeito, nenhuma outra instituição regional possui as ligações internacionais e as competências técnico-científicas de uma instituição de ensino superior, já para não referir os equipamentos e infraestruturas que podemos encontrar nos seus espaços e instalações.

Além disso, como meta-plataforma regional a instituição de ensino superior fica investida na qualidade de principal ator-rede da região e, nessa condição, como o centro de racionalidade por excelência da política de desenvolvimento regional. Esta investidura em ator-rede principal é também a razão pela qual eu recomendo a “regra do terço” para a universidade-plataforma e a revisão profunda das suas missões, funções e cultura organizacional.

 

Ordens profissionais, corporações e sindicatos e mercados de trabalho

No horizonte 2030, há uma obrigação que parece mais ou menos obvia: a universidade-plataforma fica obrigada a rever e a adequar os seus perfis de formação académica na exata medida em que os modelos de negócio das atividades e os mercados de trabalho e emprego já não apresentam o mesmo padrão de solicitações e procura, já para não falar da modificação das garantias oferecidas pelo direito laboral e social do próximo futuro.

Quer dizer, a instituição de ensino superior como meta-plataforma deve assumir as funções de ator-rede regional e, através de estruturas de concertação regional, alargar as suas missões às ordens profissionais, corporações empresariais, sindicatos e outras organizações.

As ordens profissionais devem reconsiderar o seu espírito e deontologia num sentido mais colaborativo, rever as suas áreas de atividade, realinhar a sua proatividade em termos orgânicos como incubadora de projetos e programas de empregabilidade, mais como uma associação empreendedora e menos como uma associação corporativa.

Quero crer que a vocação apropriada para as ordens profissionais no futuro próximo, em estreita colaboração com as universidades-plataforma e as associações empresariais, estará centrada na resolução do binómio “problem-solving e problem-saving” trazidos ao espaço público pelas comunidades e cidadãos. As estruturas de concertação territorial com formatos e geometrias muito variáveis e integrando uma grande variedade de atores serão uma promessa de futuro, mas, elas próprias, estarão obrigadas a sair do modelo industrial ou modelo silo, viciadas como estão em ajudas públicas e estatismo recorrente, se quiserem ser bem-sucedidas.

 

Nota Final
Um aspeto em particular, que merece a minha preocupação, tem a ver com a atual crise das ciências humanas e sociais em sentido amplo que inclui, também, a ciência política e as ciências do trabalho e da empresa, já para não falar dessa grande área que dá pelo nome de “quarto setor”.

Com efeito, a revolução digital, pelos efeitos disruptivos que tem provocado, está a deixar acantonado o setor das ciências humanas e sociais, que parece “encostado às cordas” enquanto se protege dos ataques dos adversários.

A crise atual das ciências humanas e sociais é uma crise do pensamento crítico, não apenas no seio do pensamento científico, mas, também, do pensamento social que foram, entretanto, capturados pela ideologia e a propaganda das ciências duras da engenharia e tecnologia digitais.

Não há, porém, nenhuma razão para esta hegemonia das ciências duras, apenas nos faltam alguns ideólogos e doutrinadores acreditados, isto é, alguns cientistas sociais que coloquem os problemas humanos e sociais no mesmo plano de urgência e necessidade que as ciências “ditas duras”.

Por todas as razões e demais evidências, precisamos de reinventar o humanismo do século XXI, precisamos de reinventar a sociedade-estado do século XXI, precisamos de reinventar a organização social do trabalho do século XXI, precisamos de dar asas ao espírito criativo e artístico do século XXI, precisamos, enfim, de reinventar a universidade e o universo das ciências sociais e humanas para um novo renascimento e um novo espírito das luzes no século XXI.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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