Crónicas do Sudoeste Peninsular: A economia das plataformas digitais

A economia das plataformas é uma das formas mais visíveis da revolução digital. O movimento starting up, a diversidade de […]

A economia das plataformas é uma das formas mais visíveis da revolução digital. O movimento starting up, a diversidade de plataformas e aplicações, a variedade de novos modelos de negócio digital e engenharia financeira, as incubadoras e os espaços de coworking, a smartificação dos territórios, o trabalho digital, as novas formas de risco digital, a literacia digital, a economia do estado-plataforma, são alguns dos temas principais da economia da transformação tecnológica e digital.

Vejamos alguns dos aspetos mais importantes da economia das plataformas.

1) Uma nova economia da intermediação
Todas as atividades, privadas e públicas, precisam de uma intermediação e de um agente intermediário. No passado recente essa intermediação era (é), muitas vezes, pesada e onerosa.

A esse propósito, talvez possamos falar de uma intermediação com duas faces: por um lado, custos de ineficiência internos elevados, por outro, apropriação indevida de mais-valias geradas nas respetivas cadeias de valor.

É esta intermediação intrusiva e abusiva que está, agora, posta em causa por uma nova intermediação mais leve, mais eficaz e mais eficiente, com ganhos (em princípio?) para todos os agentes da cadeia de valor, consumidores incluídos.

Acreditamos que a economia das plataformas proporcionará esse justo retorno para todos os agentes da cadeia de valor, mas tudo dependerá da regulação digital.

2) Uma economia das multidões como mercado de destino
Uma segunda característica da economia das plataformas diz respeito às “multidões como mercados de destino”. Em princípio, uma plataforma, que não tenha especificamente uma fronteira local ou regional, dirige-se tendencialmente para um mercado mundo, logo, uma “multidão extra-territorial”.

Quanto maior for a multidão mais o custo marginal da plataforma se aproxima de zero. Esta é a chamada lei dos “rendimentos crescentes de escala”, uma lei que tende para a concentração e cujo desenlace final pode acabar na formação de um quase-monopólio.

3) Uma economia do Big Data
A economia das plataformas assenta num dispositivo tecnológico (a plataforma) que recolhe, trata e comercializa informação. A informação recolhida é a matéria-prima, a informação tratada é, portanto, o dinheiro.

Quanto maior o volume e a velocidade de processamento da informação primária, maior o valor e a veracidade da informação secundária.

A inteligência artificial e os procedimentos de cálculo (algoritmos) são os operadores principais desta informação 4V, isto é, de uma economia “massa de dados” ou Big Data.

4) Uma economia do prossumidor e dos mercados bilaterais
A economia das plataformas, dependendo da sua dimensão e natureza, é mais ou menos descentralizada ou distribuída, isto é, “lateraliza” mais ou menos as relações entre produtores e consumidores e diz-nos que as suas posições relativas podem ser revertidas.

Esse é o significado do termo “prossumidor”. Neste sentido, poderíamos dizer, os “profissionais dos mercados sofrem a concorrência dos amadores das plataformas”, o que levanta o problema da confiança e da reputação dos serviços prestados pelas plataformas.

Por outro lado, a economia das plataformas lida, quase sempre, com mercados bilaterais ou biface. De um lado, os utilizadores, que são atraídos pela plataforma por via de uma larga gama de serviços praticamente gratuitos, de outro lado, todos aqueles que necessitam dessa informação preciosa sobre clientes potenciais para vender os seus produtos e serviços.

A mais valia da plataforma é a diferença entre um custo marginal decrescente no primeiro mercado e uma comissão por serviços prestados no segundo mercado.

Nas grandes plataformas, a lei dos rendimentos crescentes de escala (multidão) desemboca em mais valias fabulosas.

5) Uma economia da extra-territorialidade
A economia das grandes plataformas, pelo menos na sua fase atual, é uma economia transnacional, desterritorializada e, em boa medida, extra-territorial, isto é, praticamente desregulada.

Quer dizer, a economia das plataformas, no essencial, constrói as suas cadeias de valor para lá das fronteiras nacionais, não está presente fisicamente nos territórios onde opera e a desmaterialização das transações permite-lhe, por enquanto, manipular os volumes de negócios registados e o pagamento de impostos locais.

A extração e exportação de mais valias locais é, portanto, um problema sério levantado pela economia das plataformas.

6) Uma economia do trabalho atípico e precário
A economia das plataformas, devido à sua extrema variedade, assenta em modalidades de trabalho muito diversificadas que não têm, ainda, no quadro do direito laboral em vigor, uma consagração bem estabelecida, isto é, reina a precariedade no mundo do trabalho com assistência digital.

Falamos de diversas modalidades, tais como: trabalho independente, trabalho intermitente, trabalho contributivo, trabalho on-demand, trabalho voluntário, etc.

Estão em causa os direitos sociais e sindicais, as remunerações, os benefícios da segurança social, a convertibilidade das diferentes formas de trabalho, a proteção da pluriatividade, etc. Uma tarefa gigantesca pela frente.

7) Uma economia da smartificação territorial
A economia das plataformas propõe várias aplicações inteligentes para “multidões circunscritas”, os chamados territórios inteligentes ou smartificação territorial.

As grandes metrópoles beneficiam destas aplicações ou funcionalidades não apenas para otimizar grandes infraestruturas e equipamentos – poluição, iluminação, mobilidade, saneamento, abastecimento de água – mas, também, para aprofundar a democracia participativa e oferecer serviços colaborativos sob a forma de plataformas de interface entre as coletividades locais e os cidadãos organizados (crowd sourcing).

A economia das smart cities é uma corrente em franco crescimento.

8) Uma nova economia da regulação digital
Em tudo o que dissemos subsiste um claro problema de regulação digital para resolver. De facto, a economia das plataformas, na sua fase atual, padece de um défice de regulamentação e regulação.

A extraordinária capitalização bolsista das grandes plataformas é um sinal de que existem falhas graves de mercado, mas, também, de política pública (estado-regulador).

Está em causa não apenas a redistribuição do valor gerado nas cadeias de valor, mas, também, a proteção dos dados e dos direitos pessoais (e a sua valorização).

De facto, o risco digital é, em boa medida, um “buraco negro” que a nova política regulatória ainda não resolveu satisfatoriamente.

9) Uma nova economia para o “quarto setor”
A economia das plataformas é uma esperança promissora para a estruturação da economia do quarto setor na sua aceção mais ampla, que inclui o setor público, a economia social e solidária, a economia do conhecimento e da cultura e a economia dos bens comuns colaborativos em sentido largo.

À medida que a economia material vai sendo tomada pela automatização, pela inteligência artificial e a robótica, o quarto setor irá crescer na mesma proporção e, tarde ou cedo, acabará por ser o grande recetáculo da mão de obra libertada pelos outros setores.

A economia das pequenas plataformas estará particularmente vocacionada para a estruturação do quarto setor e, muito em especial, para uma economia dos comuns colaborativos que será o principal pilar deste setor.

10) Uma economia do estado-plataforma
Um caso particular da economia das plataformas é a economia do estado-plataforma que podemos associar, também, ao tema da reforma do estado-administração.

No caso da organização “estado-administração”, para lá das alterações jurídicas que as reformas sempre implicam, acreditamos que uma grande transformação acontecerá no plano da cultura organizacional do estado-plataforma, a pretexto, justamente, da transformação digital que já aí está e que terá um crescimento exponencial no futuro próximo.

Perante a Grande Transformação Digital, não se trata, apenas, de converter um estado-informático num estado-digital, mas de converter uma cultura organizacional hierárquica e vertical, o “estado-silo”, numa cultura organizacional participativa e colaborativa, o “estado-plataforma”.

Com efeito, o que aqui sugerimos é uma alteração radical no sistema de valores e na cultura política do estado-administração, sabendo nós que o estado central, o estado local e o estado social são os pilares essenciais do velho estado clientelar do século XX e, desde logo, as principais fontes de alimentação do sistema político-partidário ainda vigente.

Notas Finais
Ao longo dos anos, o “modelo silo do estado velho” criou territórios-zona e gavetas orçamentais para administrar áreas e atividades “no modo” clientelar e corporativo.

Em cada silo, a equipa ministerial é a cúpula desse modelo e a sua legitimidade alimenta-se dessa provisão clientelar.

Do mesmo modo, em cada área governativa forma-se um canal de acesso privilegiado e uma cadeia de influências com várias intermediações onde se acomodam os agentes facilitadores e as estruturas de concertação e negociação.

Ninguém parece estar muito preocupado com as ineficiências internas que se geram nas zonas de interface entre setores e áreas de atividade, uma vez que as externalidades negativas assim geradas são geralmente cobertas e socializadas pelo contribuinte.

Como dissemos, a economia das plataformas promove uma cura de emagrecimento nas intermediações, sejam elas económicas, financeiras, institucionais ou associativas e só por essa razão já teria valido a pena promover a transformação digital das organizações privadas e públicas.

Há, todavia, um longo caminho a percorrer e num país como Portugal, onde geralmente se confunde uma política pública com a publicação de um diploma legal em diário da república, não é tarefa fácil montar um estaleiro de pequenos núcleos inovadores no interior da administração pública em estreita ligação com centros de investigação e outras start up e, a partir daí, gerar um movimento de reforma da nossa administração pública.

No nosso caso, o principal estrangulamento ao patrocínio adequado deste novo universo de start-up é, como dissemos, o “modelo silo” completamente ultrapassado das nossas principais instituições, totalmente viciadas em candidaturas e ajudas públicas para preencher a sua missão corporativa.

Entretanto, enquanto se aguardam melhores dias, a alternativa mais conveniente está sempre à espreita, chama-se modernização administrativa e negócio informático, necessários, é certo, mas que não se confundem com cultura colaborativa e participativa e estado-plataforma.

Finalmente, a revolução digital põe em causa não apenas a intermediação económica e comercial, mas, a prazo, também, a intermediação política e a fonte de legitimação democrática e representativa tal como nós a conhecemos nas sociedades ocidentais, razões mais do que suficientes para que o conservadorismo político-partidário tome as medidas defensivas e cautelares que se justificam nesta conjuntura.

Seja como for, a revolução digital é imparável e mudanças profundas ocorrerão nas relações entre a sociedade civil, o estado e as plataformas digitais. Avizinham-se e adivinham-se muitos conflitos e colisões de interesses.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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