Resistência a antibióticos é uma ameaça global à saúde pública

Imagine um cenário em que um simples corte num dedo ou uma simples intervenção cirúrgica o possam deixar a lutar […]

Imagine um cenário em que um simples corte num dedo ou uma simples intervenção cirúrgica o possam deixar a lutar pela vida. Apesar de parecer uma descrição pertencente a um passado distante, trata-se de uma possibilidade encarada com crescente seriedade pela comunidade científica.

Atualmente cerca de 700 000 mortes/ano são registadas em todo o mundo devido a infeções provocadas por bactérias resistentes a antibióticos.

E perante o acentuado desinteresse das farmacêuticas na pesquisa de novos antibióticos (essencialmente por questões de retorno do investimento), estima-se que por volta do ano de 2050 este número ascenda aos 10 milhões.

A resistência a antibióticos surge quando bactérias se tornam capazes de proliferar na presença de quantidades terapêuticas de um ou mais antibióticos.

Essa resistência pode surgir através de diversos mecanismos, como por exemplo, a aquisição de mutações espontâneas durante a pressão seletiva que é imposta pela exposição a antibióticos, e/ou aquisição de material genético que confira essa resistência através de outras bactérias.

A prescrição abusiva destes fármacos e a incapacidade de garantir uma utilização informada por parte de pacientes, foi e continua a ser um catalisador para o aparecimento de resistência.

Por exemplo, um inquérito levado a cabo pela organização mundial de saúde (OMS) envolvendo 12 países, revelou que 64% dos cerca de 10,000 inquiridos crê que os antibióticos são eficazes contra, por exemplo, infeções virais comuns como a gripe ou constipações (quando não o são).

32% acredita ainda não ser necessário respeitar as indicações médicas respeitantes ao período de duração do tratamento.

Mas o problema é, contudo, mais complexo e ultrapassa o domínio clínico. É prática comum em vários países administrar antibióticos a animais saudáveis para consumo humano por forma a acelerar o seu crescimento, ou como medida profilática/metafilática.

Ora esta prática tem sido apontada como uma das principais causas de infeções resistentes em animais e humanos. Na União Europeia o uso de antibióticos como estimulantes de crescimento de animais para consumo humano é proibido desde 2006.

Apenas mais recentemente, em 2017, a Food and Drug Administration (FDA) introduziu algumas diretrizes no sentido de limitar a sua utilização nos Estados Unidos da América (não sendo claro o seu caráter obrigatório).

Apesar destas medidas, estima-se que o consumo global de antibióticos para uso animal aumente 52% até 2030. Atualmente, este valor situa-se entre as 100 000-190 000 toneladas/ano, com a China a liderar a lista de países com níveis de utilização mais elevados (média de 318 mg de antibióticos por kilograma de produto animal).

Portugal conta com níveis de utilização bem mais moderados, na ordem dos 90 mg por kilograma de produto animal.

De acordo com um relatório, publicado recentemente pela OMS, são as bactérias pertencentes às espécies Acinetobacter baumannii, Pseudomonas aeruginosa, e à família Enterobacteriaceae, que globalmente apresentam índices mais elevados de resistência a antibióticos (tipicamente carbapenemos).

Ao longo da última década, a sua disseminação alcançou níveis endémicos em várias regiões do globo, incluindo a América do Norte (Estados Unidos), América Latina (Argentina, Brasil, Colômbia), Europa do sul e leste (Grécia, Itália, Roménia), Médio Oriente (Israel), e Ásia (China).

Como resposta à crescente ineficácia dos carbapenemos em fazer face a infeções causadas por estas espécies bacterianas, registou-se um aumento significativo na utilização de um outro antibiótico – a colistina.

Uma das suas particularidades é a de pertencer ao grupo de antibióticos designado de último recurso, utilizados no tratamento de infeções que não respondem a outras drogas.

Mas mesmo no caso deste antibiótico, as más notícias não se fizeram esperar. Em 2015, foi encontrado em bactérias isoladas de gado suíno na China, o gene mcr-1 que confere resistência à colistina.

Pelo facto de este gene ter sido encontrado integrado naquilo que se designa por elemento genético móvel, torna-se mais fácil que seja transmitido a outras bactérias.

Desde então, o gene mcr-1 (e outras variantes do mesmo) têm sido encontrados em isolados bacterianos um pouco por todo o mundo, incluindo em várias dezenas de suínos testados em duas quintas produtoras em Portugal. Isto significa, portanto, que as opções de tratamento disponíveis (e eficazes) estão a diminuir.

O problema da resistência a antibióticos é uma responsabilidade coletiva. Fazer-lhe frente implica que se seja célere na implementação de uma agenda política, económica e social livre de interesses travestidos, e que se traduza em ações vigorosas e coordenadas à escala local, nacional e internacional.

Alguns exemplos destas ações que poderemos elencar incluem: (a) a criação de programas de sensibilização focados no uso responsável e otimizado de antibióticos; (b) a limitação da sua utilização para fins não terapêuticos; (c) a proibição de venda sem receita médica (prática comum em vários países); (d) o desenvolvimento de testes de suscetibilidade a antibióticos mais rápidos e precisos; (e) criação de novos modelos económicos que assegurem a viabilidade no desenvolvimento de novos antibióticos e tecnologias associadas; (f) extensão do tempo de vida de patentes para antibióticos considerados prioritários; (g) legislação que conduza a uma redução da contaminação ambiental por organismos resistentes ou resíduos antimicrobianos.

Decorria o ano de 1945, quando o Nobel Sir Alexander Fleming lançou um alerta referindo-se ao antibiótico que havia descoberto, a penicilina: “o público exigirá a droga e, então, começará uma era de abusos”.

Passaram-se mais de setenta anos. Precisamos de agir.

 

Autor: Pedro Oliveira
© 2018 – Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva

Pedro Oliveira é especializado na área das Ciências da Vida e Computação, com formação de base em Engenharia Biológica pelo Instituto Superior Técnico, tendo passado pela University College London durante o mestrado.
Doutorou-se em 2010 pelo IST na área de Biotecnologia, e foi pós-doutorando no Instituto Pasteur de Paris onde trabalhou na área de Biologia Computacional.
É atualmente cientista sénior na Mount Sinai School of Medicine em Nova Iorque.

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