Imagens de um singular Algarve – Memória das orgânicas embarcações

«Em todos os sectores da vida humana o avanço tecnológico faz sentir a sua acção modificadora (…) (…) Na fase […]

«Em todos os sectores da vida humana o avanço tecnológico faz sentir a sua acção modificadora (…) (…) Na fase seguinte ao desuso é o completo abandono, a ruína e a destruição e, depois, só o vazio do esquecimento, lacuna aberta que por vezes não se consegue preencher jamais. As embarcações, quer tradicionais, quer artesanais, do nosso país têm demasiados exemplos disso. Muitos tipos desaparecem por completo, sem deixar vestígios e outros, ante os nossos olhos impotentes, dificilmente sobreviverão se o seu espólio não for recolhido e conservado como se impõe. Há mais de uma década, chamou-se a atenção para este estado de coisas no que poética, mas drasticamente, foi intitulado “NO CREPÚSCULO DAS EMBARCAÇÕES” (FILGUEIRAS, 1970). Não notamos que tal mensagem tenha sido atendida e muito menos ainda, pelos que poderiam fazer alguma coisa». ARMANDO REIS MOURA (1985) in Boletim da ADPNCRA.

A primeira imagem que surge no exercício de pensar o território Algarve corresponde, na maioria das vezes, a uma litoral fímbria que percorre e abarca todo o território.

De facto, assim acontece, de Odeceixe a Alcoutim, numa paisagem amplamente diversificada e mutável, ou seja:

– Quer por entre agrestes e atlânticas falésias e serpenteantes margens do grande rio do Sul
– Quer por entre pequenas enseadas escondidas por xistosos penhascos e extensos areais.

A faixa litoral desenvolve-se assim em diferentes unidades de paisagem, correspondendo a áreas tão diferentes e com tão díspares características, mas tendo sido ocupada de forma constante e resiliente pelo ser humano que procurava no elemento aquoso e nas zonas sob sua influência meios de sobrevivência. Confirmando tal facto, em toda sua extensão, inúmeros e tangíveis testemunhos de remotas ocupações humanas.

A pesca foi uma das actividades praticadas desde sempre nomeadamente recorrendo a embarcações como meio de uma mais vasta safra, sendo que esta se caracterizou no Algarve, tal como em todo o nacional território, por uma persistência tardia quer das embarcações, quer das artes.

Assim, salpicando todo o litoral, existiam pontos nevrálgicos onde e de onde pequenas embarcações de madeira partiam para breves campanhas de pesca junto à costa, e com o tempo, adaptando suas formas ao tipo de mar e costa onde desenvolviam sua actividade.

Construídas artesanalmente por mestres experientes, exigiam, por um lado, um sábio conhecimento das várias madeiras a utilizar nos múltiplos elementos que constituíam a totalidade da embarcação, por outro, outro tipo de mesteres necessários a uma boa navegabilidade e manutenção da embarcação nomeadamente um mestre calafate que garantisse a boa estanquidade da mesma.

Eram aos milhares as embarcações de pequeno porte que, até aos meados do passado século, sulcavam as águas do Sul, tentando, em lances de empírica sorte, tirar o sustento do mar.

Desde os meados do passado século, com as fortes e rápidas mudanças ocorridas na sociedade portuguesa, as embarcações têm vindo a ser abandonadas/abatidas e preteridas por alvas e resinosas embarcações, em cuja pele não adere já o colorido orgulho de quem as possui. Assim, passamos de um conjunto multicolor no passado para um asséptico presente.

Hoje, toda essa riqueza de saberes, de matérias, toda essa riqueza de cromatismos e de motivos pictóricos já não existe. São residuais os testemunhos dessa riqueza, uns ainda em boas condições de navegabilidade, na maior parte das vezes servindo a indústria do Turismo, em passeios familiares pela costa, poucos na pesca e muitos abandonados em terrenos contíguos aos estaleiros ou no lodo de rios e outros ainda secando suas envernizadas carcaças em rotundas.

No Algarve, das orgânicas embarcações que, durante tanto tempo, caracterizaram a paisagem em um qualquer litoral ponto, não resta, exceptuando menos de meia dúzia de casos, o assumir de uma memória recente, dando-lhe outras águas para navegar.

 

Autor do texto e das fotos (todos os direitos reservados):
Filipe da Palma, fotógrafo

 

 

 

 

 

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