Crónicas do Sudoeste Peninsular: Um novo contrato social para o mundo rural

Nos mercados de futuro, os bens e serviços que incorporem, ao mesmo tempo, a eficiência económica, a responsabilidade social, a […]

Nos mercados de futuro, os bens e serviços que incorporem, ao mesmo tempo, a eficiência económica, a responsabilidade social, a sustentabilidade ambiental e a identidade dos territórios, serão considerados bens de mérito e reputação (BMR) e estes quatro atributos distintivos serão a sua fonte de valor primordial que a sociedade premiará quer por via de um preço mais alto, de um contrato territorial específico ou de uma transferência pública especial, por exemplo, um pagamento ambiental, ou, o mais provável, um combinado de vários incentivos.

A procura destes sinais distintivos tornar-se-á, em si mesmo, um fator de diferenciação por excelência e os territórios-rede procurarão constituir-se à volta dos bens de mérito e reputação.

Do que se trata, portanto, é de criar as condições para que estes sinais distintivos vejam a luz do dia e sejam, progressivamente, incorporados no desenho dos mercados agroecológicos, a principal fonte de provisão dos bens de mérito e reputação.

Pela sua natureza socio-estrutural, os mercados agroecológicos serão o grande desafio do próximo futuro, quer para a investigação científica, na zona de fronteira entre a economia e a ecologia, quer para as políticas do território, na formulação concetual e no desenho de novos instrumentos, de tal modo que seja possível lançar uma nova geração de bens públicos rurais e infraestruturas agroecológicas onde o lugar central seja desempenhado pelos bens de mérito e reputação.

Se assim for, estaremos a passar gradualmente dos serviços de produção para a produção de serviços, sendo os serviços agroecossistémicos, na sua variedade, a expressão superior de um novo contrato social para o mundo rural.

 

Os principais mercados de futuro do mundo rural

Neste novo enquadramento, onde as alterações climáticas, as alterações demográficas, as alterações patrimoniais e as transformações digitais estarão sempre presentes, estamos em condições de enunciar aqueles que serão, provavelmente, os principais mercados de futuro do mundo rural para as próximas gerações.

Muitos destes mercados estarão, porém, em rota de colisão com as commodities dos mercados globais e do agronegócio e, por esse facto, precisam de assegurar a proteção e realização de “serviços mínimos” em dois grandes vetores estruturantes, a saber: a biodiversidade e a produção agroecológica, os ecossistemas e as paisagens globais.

Se essa garantia for prosseguida e realizada, o que não é tarefa fácil, então os principais mercados de futuro do mundo rural serão os seguintes:

– Os mercados dos produtos “limpos, justos e seguros”: uma gama cada vez mais alargada de produtos, que a segurança alimentar e a rastreabilidade procurarão assegurar com a ajuda das novas tecnologias digitais;

– Os mercados do carbono: as métricas e os mercados serão cada vez mais sofisticados, as sanções e penalizações também, pelo que assistiremos a um aumento das transações entre quem limpa e quem suja e a uma intervenção mais efetiva dos fundos de investimento no “sequestro carbónico” do mundo rural;

– Os mercados da água: da água da chuva até às águas recicladas, da agricultura de precisão até à “internet das coisas”, a medição rigorosa dos consumos e o preço da água imporão, espera-se, uma disciplina acrescida nos comportamentos;

– Os mercados da biodiversidade e dos serviços ecossistémicos: a fragmentação dos ecossistemas e habitats, agravada pelas alterações climáticas, põe em risco a biodiversidade e os serviços ecossistémicos, que são a base dos serviços produtivos e culturais; esta fragilidade, gerida como um “fator escasso”, estará na origem de um “mercado dos comuns” no que diz respeito à biodiversidade e serviços ecossistémicos; além disso, a introdução de novas tecnologias digitais permitirá identificar, com precisão crescente, o modo como se distribui o risco moral e as más práticas nesta matéria;

– Os mercados das amenidades e da arquitetura paisagística: o ordenamento da paisagem global e as boas práticas de arquitetura e engenharia ambiental são um recurso precioso e uma externalidade de primeira linha para a produção de amenidades recreativas e turísticas;

– Os mercados dos 4R: reduzir, reciclar, reparar e reutilizar, é uma questão fundamental de consumo responsável, simples, rápida e barata de pôr em execução, logo uma indústria de serviços em rápido crescimento;

– Os mercados dos produtos com identidade e denominação de origem: estes são os nossos produtos e mercados de nicho, os terroirs da nossa imaginação, que importa valorizar a todo o custo porque põem no mapa os nossos territórios mais remotos e desfavorecidos;

– Os mercados dos produtos pós-convencionais: é possível ter uma agricultura de proximidade e acompanhada pela comunidade local, em diferentes modalidades de agricultura comunitária, ao serviço, por exemplo, de uma política de institutional food;

– Os mercados da mitigação, adaptação e compensação: as alterações climáticas não perdoam, eis, pois, mais um campo fundamental de intervenção para a política pública e uma nova linha de produtos e serviços;

– Os mercados dos alimentos funcionais, os “alicamentos”: a investigação biotecnológica ao serviço da saúde pública produzirá uma gama imensa de novos produtos e serviços correspondentes a uma enorme variedade de dietas que a publicidade e o consumidor vão reclamando;

– Os mercados da microgeração energética integrada: este é um campo imenso para os sistemas integrados de energia, desde a poupança e a eficiência até à diversificação das fontes, em que os consumidores são, igualmente, produtores de energia;

– Os mercados da prevenção, contingência e segurança: este é, também, um mercado em crescimento rápido, da meteorologia, dos equipamentos de aviso e alerta, dos equipamentos de combate a incêndios, até aos processos laboratoriais de rastreabilidade dos produtos;

– Os mercados da regeneração e da renaturalização dos recursos e dos ecossistemas: a nossa variedade de microclimas, posta em causa pelas alterações climáticas, é um campo imenso para novos serviços de regeneração e renaturalização, desde a reconstituição de solos esqueléticos até à cirurgia reconstrutiva das áreas ardidas.

Nesta linha de argumentação teremos à nossa frente novos mercados muito exigentes e especializados, com graus diferenciados de desenvolvimento e que recomendam uma outra geração de investimentos a financiar pela política pública, por exemplo: investimentos em tecnologia digital dos territórios para a prevenção estrutural dos agroecossistemas, em gestão ambiental e ordenamento tendo em vista a redução, reciclagem e reutilização de recursos, na reconstituição e melhoramento de mosaicos paisagísticos, na biotecnologia dos ecossistemas para melhorar a sua produtividade, em mitigação e adaptação para combater as alterações climáticas, em sistemas descentralizados de produção de energias alternativas, em sistemas de alerta e aviso face às calamidades naturais/antrópicas, na formação de amenidades paisagísticas e recreativas, etc.

 

Os distintos processos de ruralização em curso

Regressemos à forma como ocupamos o espaço rural, seja pelo lado da produção ou pelo lado do consumo. Estão em curso distintos processos de ruralização que são, cada um a seu modo, outros tantos processos de delimitação e recorte do território e, mesmo, de privatização do espaço público rural e, portanto, fonte de muitos e novos conflitos de interesse.

Chegados aqui, reentramos nos processos agro-políticos de ocupação do território e, por isso mesmo, não podemos idealizar o mundo rural por mais assombrosas que sejam as nossas representações e encenações.

Com efeito, na retaguarda dos nossos imaginários urbanos sobre o mundo rural “corre o hardware” da ocupação do território, isto é, as relações de poder e os processos agro-políticos que, na sua discrição e arbitrariedade, determinam o essencial das relações sociais e as sociabilidades do mundo rural.

Por isso mesmo, não devemos confundir o frenesim dos novos atores recém-chegados ao mundo rural com as relações de poder no interior do mundo rural português, que é, como sabemos, uma mistura, por vezes perversa, de abandono, concentração e exploração intensiva das terras.

Eis alguns dos principais processos de ruralização em curso que recortam o território nacional de modo muito diverso e cuja variedade é, afinal, a marca mais distintiva do rural tardio português:

– O rentismo imobiliário expectante em busca da extração de mais-valias fundiárias;

– A florestação industrial de terras agrícolas (as grandes plantações ordenadas);

– A industrialização verde ou o greening produtivista (o industrialismo ecológico);

– O radicalismo conservacionista e as grandes propriedades naturais ou naturalizadas;

– A residencialização do espaço agro-rural (os loteamentos e aldeamentos, mas, também, a habitação em espaço rural);

– A energetização do espaço agro-rural (os parques energéticos, as culturas industriais para biocombustíveis);

– A turistificação das amenidades rurais (os parques, as rotas, as vias, os trilhos, os corredores, as praias fluviais, os locais de observação);

– A cinegetização do espaço rural (as grandes reservas de caça e a criação/produção doméstica de animais de caça);

– O produtivismo das agriculturas especializadas (as explorações industriais, as estufas, a hidroponia, as culturas super-intensivas);

– A extensificação/intensificação da agricultura multifuncional do montado;

– As agriculturas de nicho e a certificação de agriculturas com indicação geográfica e denominação de origem;

– A agricultura comunitária, os circuitos curtos, o intitutional food.

Como é óbvio, os novos valores relativos ao ordenamento, ao uso múltiplo e à acessibilidade ao espaço agro-rural conflituam com a tentativa de privatização de alguns processos de ruralização em curso.

Os conflitos são inevitáveis, mas deles também podem surgir novos territórios se estes territórios aprenderem a comunicar entre si.

Esta é a grande incógnita e o obstáculo maior à constituição dos territórios-rede. Dito de outro modo, a coabitação de distintos processos de ruralização tanto pode conduzir ao levantamento de barreiras à comunicação e ao conhecimento como pode levar à criação de territórios-rede, muito mais diversos, com maior intensidade-rede e um efeito-visitação muito mais pronunciado.

Se houver um regulador acreditado que esteja atento ao curso destes diferentes processos de ruralização, nessa altura talvez tenhamos uma oportunidade para fazer da sua coabitação um excelente instrumento de desenvolvimento territorial.

 

Nota Final

Um facto extremamente perturbador que nos faz voltar à história e à política diz respeito às dinâmicas territoriais. A aceleração das dinâmicas territoriais e a desestruturação social que daí decorre, são de tal ordem que estamos confrontados e destinados a ser “construtores sociais de território”, por força das circunstâncias.

Para isso, teremos de nos libertar do discurso dicotómico e reinventar o sentido relacional das coisas. Face aos territórios precários da globalização todos somos migrantes: pessoas, recursos e territórios. Tudo está em desconstrução-reconstrução.

O capitalismo continua o seu trabalho de sapa, contra a autonomia e a diversidade. As identidades são postas em causa e substituídas pelo conceito de mobilidade migrante. É o admirável mundo novo das redes de todo o tipo e da sua razão instrumental. É aqui que nos encontramos, numa encruzilhada de territórios sem rede, de territórios em rede e de territórios-rede.

Neste contexto observamos os esforços da União Europeia para consagrar uma agenda da economia da biodiversidade, dos ecossistemas, dos serviços ecossistémicos, de modo a prevenir as alterações climáticas e os riscos globais. De onde se deduz que temos de voltar a reconhecer a imanência dos territórios e reinventar um contrato social com o mundo agro-rural para lá de todas as dicotomias reais e artificiais criadas pela modernidade urbano-industrial e urbano-rural.

Quero acreditar que a próxima geração de políticas públicas para a agricultura será orientada prioritariamente para a promoção dos bens de mérito e reputação na linha dos quatro eixos antes referidos (agroecologia, biodiversidade, serviços ecossistémicos e paisagem) e que, nesse sentido, a política de subsídios à produção e ao rendimento da União Europeia dará lugar, progressivamente, a uma ajuda contratual por serviços prestados, uma mistura inteligente de empresarialização e contratualização enquanto o preço do produto final não incorporar toda a “fileira de mérito”.

Agora que se prepara a reforma da PAC na União Europeia, estou convencido de que, mais tarde ou mais cedo, os quatro eixos referidos estarão na origem da formação dos territórios-rede e que esta constituirá a grande reforma estrutural da União Europeia para o mundo rural e para o advento da 2ª ruralidade. Uma política para os bens de mérito e reputação será o grande contributo da União Europeia para o pós-produtivismo da 2ª modernidade.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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