Crónicas do Sudoeste Peninsular: Cadeias de valor, uma nova geografia

Num seminário recente – a Semana Empresarial da Vidigueira – pediram-me para falar sobre a formação das cadeias de valor […]

Num seminário recente – a Semana Empresarial da Vidigueira – pediram-me para falar sobre a formação das cadeias de valor em espaço rural.

Importa não esquecer que estamos na área de influência do empreendimento do Alqueva onde as culturas industriais que aí nascem se cruzam com as culturas mais convencionais desta sub-região alentejana. Trago ao conhecimento dos leitores algumas reflexões que produzi nessa ocasião.

1. As tendências pesadas, as quatro transições
Há variáveis externas ou exteriores cujos episódios condicionarão sempre a formação das cadeias de valor seja qual for o seu âmbito geográfico.

Desde logo, as alterações climáticas cujos episódios, cada vez mais aleatórios, modificaram substancialmente a gestão das expectativas e do risco envolvido e, portanto, as decisões sobre o que produzir, onde produzir e em que condições. Falamos a este propósito de “transição ecológica”.

Em segundo lugar, as alterações demográficas que modificaram o fluxo intergeracional de mão-de-obra e a programação das atividades agrícolas e agroindustriais, assim como, a organização dos mercados de trabalho e a formação do preço do fator trabalho. Falamos a este propósito de “transição demográfica”.

Em terceiro lugar, a revolução digital em curso que modificará substancialmente o perfil da cadeia de valor e a estrutura de custos, preços e margens dos produtos e serviços finais. Falamos a este propósito de “transição digital”.

Finalmente, uma referência às grandes migrações, não apenas de pessoas e capitais, mas, também, de plantas e animais, que buscam sobreviver em outras paragens. Falamos aqui de “transição migratória”.

Estas quatro tendências pesadas ou grandes transições encurtaram dramaticamente, nas últimas décadas, a duração do seu ciclo de vida e estão a produzir verdadeiras ondas de choque sobre o nosso modo de vida quotidiano. A geografia das cadeias de valor será fortemente abalada por estas quatro transições.

2. Os diferentes conceitos de cadeia de valor
Depois das tendências pesadas e das grandes transições, uma abordagem de natureza mais conceptual. Costumo dizer que o modo de olhar para um problema é uma parte importante desse problema. Neste particular, considero que há, pelo menos, três abordagens possíveis para o conceito de cadeia de valor.

Em primeiro lugar, numa aproximação mais restritiva e mais convencional, o conceito de “fileira económica”, com diferentes comprimentos de onda, mais intra-setoriais ou mais inter-setoriais. Trata-se de uma visão industrialista ou transformadora da atividade económica, geralmente verticalizada e incluindo a agricultura, a agroindústria, a logística e o transporte, a distribuição e o retalho.

Do ponto de vista da sua regulação, poderão existir vários modelos, com mais concertação interna, uns, com mais hétero-regulação e regulação pública, outros.

Em segundo lugar, o conceito de “triangulação ou desenvolvimento sustentável” que considera, para lá da variável económica, a dupla responsabilidade social e ambiental, numa versão mais distribuída e, digamos, fiscalmente mais vantajosa. É, também, a consideração de “noções gémeas” como justiça social e justiça ambiental, já numa aceção mais ampla de coesão social e territorial.

Em terceiro lugar, o conceito de “ecossistema inteligente” que acolhe no seu seio os últimos desenvolvimentos da revolução digital e que em matéria de geografia do valor nos transporta para novos imaginários territoriais onde a marca, a multidão e o marketing (os 3M) são determinantes, mas, também, a conceção e o design dos produtos.

Em todos os casos, como se compreende, a geografia das cadeias de valor, mais domésticas e/ou mais internacionalizadas, depende muito de opções de modelo de negócio e política empresarial e envolve sempre uma combinação destas diferentes aceções.

3. A gestão da cadeia de valor
De um ponto de vista mais analítico, a gestão de uma cadeia de valor (na aceção desempenho da fileira económica) depende de vários fatores.

Enunciamos aqui os principais:
– As ineficiências internas à fileira,
– O grau de concentração e capitalização da fileira,
– A estrutura do mercado, mais oligopolista ou mais concorrencial,
– O grau de inovação tecnológica e digital da fileira e suas inconsistências,
– O tratamento fiscal e os benefícios fiscais de que goza a fileira,
– A gestão do risco e das ocorrências extremas e o seu modo de cobertura,
– A correlação de forças internas e a distribuição de mais-valias,
– As estruturas de concertação socioprofissionais e sociopolíticas,
– O modelo de negócio global e a política empresarial no interior da fileira,
– A existência ou não de um regulador público acreditado.

Para lá destes fatores, que só por si nos levariam a configurar uma tipologia das fileiras agroindustriais verticalizadas, há algumas regras de oiro que a fileira deverá cumprir se quiser ser bem-sucedida no que diz respeito à geração de mais-valias.
A primeira regra de oiro: privatizar o benefício e socializar o prejuízo, mas com critério.
A segunda regra: a dupla responsabilidade que proporciona um claro benefício fiscal.
A terceira regra de: as boas práticas de sustentabilidade acrescentam valor aos produtos.
A quarta regra: o risco moral de um dos parceiros não fortalece a reputação da fileira.
A quinta regra: a proteção da paisagem e a cultura patrimonial são fatores distintivos.
A sexta regra: a concertação interna à fileira acrescenta valor aos nossos produtos.
A sétima regra: os clientes virtuais via o marketing digital não são clientes reais.
A oitava regra: a imagem de marca da fileira, o todo é maior que a soma das partes.

4. A transformação digital da geografia da cadeia de valor
Com a revolução digital já em curso assistiremos a uma profunda transformação na configuração das cadeias de valor, os efeitos externos do novo ecossistema digital serão inimagináveis e os fatores imateriais passarão a determinar o perfil da “cadeia de valor METI” (matéria, energia, trabalho, informação).

Eis algumas alterações:
– Não se falará tanto em fileira de produção, passará a falar-se mais em cadeia de valor e ecossistema inteligente.
– A cadeia de valor desmaterializa-se e desloca-se para os fatores imateriais a montante e a jusante da produção, sobretudo para junto dos clientes.
– O acesso é mais importante do que a propriedade, isto é, passa-se gradualmente de uma economia de produtos para uma economia de serviços.
– A economia das redes, mais descentralizadas e distribuídas, por via de plataformas tecnológicas e aplicações, passará a ser o núcleo central da criação de valor, mudando a posição relativa dos atores da fileira.
– A economia das multidões e os mercados biface passarão a concentrar o foco das atenções, sobretudo, a figura do consumidor-produtor (prosumidor).
– A economia e a gestão de bancos de dados serão o valor e a matéria prima mais valiosas das cadeias de valor e o cloud computing o instrumento mais poderoso; a fileira terá de pensar como recolher e tratar os seus dados e o que fazer com eles.
– A economia empresarial dos novos empreendimentos digitais mudará profundamente o negócio bancário e a natureza das operações financeiras em direção ao capital de risco.
– A economia empresarial dos novos modelos de negócio digitais mudará profundamente a economia do trabalho e da proteção social da fileira no próximo futuro.
– A cadeia de valor e a sua configuração acompanharão, de perto, o que a política pública fizer em matéria de regulação digital.

Notas Finais
Algumas notas finais. Em primeiro lugar, os grandes riscos, cada vez mais interdependentes, sistémicos e aleatórios, serão uma ameaça constante a pesar e a pairar sobre as nossas cabeças no futuro próximo e serão um primeiro fator a determinar a nova geografia das cadeias de valor.

Em segundo lugar, a economia das grandes plataformas, colaborativas ou não, irá obrigar-nos a fazer “alianças com as multidões”, isto é, seremos cada vez mais prosumidores e participaremos cada vez mais nos custos de operação das plataformas a troco de uma série de “sedutoras promoções”. Esta deslocação para jusante, mais próxima do consumidor final, obriga-nos a rever a tradicional geografia da formação do valor.

Em terceiro lugar, a nossa dupla responsabilidade, ambiente e social, alimentará a esperança de uma efetiva renovação do capital natural e do capital social, uma vez que existe um grande potencial para regenerar o ambiente natural através do uso de tecnologias e sistemas inteligentes aplicados à economia circular, assim como a formação e requalificação das pessoas na mesma linha. Este efeito externo positivo e redistributivo permitirá criar uma geografia de valor muito mais reputacional para toda a fileira.

Uma última nota diz respeito aos “signos distintivos territoriais” da sub-região de Vidigueira-Alvito-Cuba-Portel na área de influência do grande empreendimento do Alqueva e à geografia do valor que eles contêm. Creio que esta sub-região merece a criação de uma ator-rede-dedicado para, justamente, promover a eleição dos seus signos distintivos e através dos seus 3M (a marca, a multidão, o marketing) transformar a “terra dos grandes lagos” e o “terroir dos gamas” num grande destino turístico.

O imaginário desta sub-região é muito valioso bastando, para tal, invocar algumas imagens distintivas: a brandura do cante alentejano, os cheiros do campo e a poesia da natureza, o mosaico paisagístico do montado ou as noites luminosas celestiais, já para não referir as ilhas de água do grande lago e os percursos de natureza no silêncio das suas margens.

Estas evocações são preciosas para construir uma outra iconografia e uma meta-narrativa identitária que colocarão, seguramente, esta sub-região num outro patamar de visitação.

E a Vidigueira no coração deste território-rede de eleição.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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