O mar de Sagres poderá estar à beira de fornecer ao mundo um analgésico mais eficaz e bem menos agressivo para as dores crónicas. A empresa Sea4Us, sediada nesta localidade do concelho de Vila do Bispo, venceu o prémio SME Instruments do programa Horizonte 2020 da Comissão Europeia, no valor de 50 mil euros, e com isso ganhou a possibilidade de aprofundar o desenvolvimento de um medicamento para aliviar aqueles que sentem, constantemente, dores, e que seja uma alternativa à morfina e aos opóides.
O “Sea4Pain” é o projeto principal da empresa com sede em Sagres e está intimamente ligado à Costa Vicentina. É ali que vive a esponja que forneceu o composto principal do medicamento que valeu à Sea4Us este prémio destinado a Pequenas e Médias Empresas europeias que inovem e tenham ideias com elevado potencial.
«Este prémio – apesar dos 50 mil euros também darem jeito – dá-nos, sobretudo, um grande prestígio, porque há muita, muita concorrência», considerou Pedro Lima, co-fundador e diretor geral da empresa, numa entrevista ao Sul Informação.
Além dos 50 mil euros que já irá, garantidamente, receber, a Sea4Us também ganhou «acesso a muitos serviços que a Comissão Europeia tem. Vamos ter acesso a coaching, aconselhamento e formação para podermos alavancar o projeto, para a candidatura a uma segunda fase. E aí, já é um valor acima do milhão de euros e abre outros horizontes. Esta primeira fase serve, essencialmente, para fazer o plano de negócios e o estudo de viabilidade do projeto, que poderá ter agora esse impulso».
Tudo graças ao analgésico para a dor crónica que a empresa já está a desenvolver, que visa encontrar «uma alternativa à morfina e aos opióides», que o co-fundador da empresa, que se formou em Biologia Marinha pela Universidade do Algarve e, mais tarde, se doutorou em Neurofisiologia no Reino Unido, acredita que «vai funcionar muito melhor e que não terá efeitos secundários previstos».
O foco do “Sea4Pain”é encontrar uma terapia alternativa para a dor crónica, que, além de ser um sintoma associado a certas doenças graves, pode ser, só por ela, uma patologia. Atualmente, o que está disponível no mercado para este tipo de dor são opióides, como a morfina, e medicamentos com fortes efeitos secundários associados.
«A dor crónica é uma dor continuada, constante, que fica, por vezes, para o resto da vida. Ela advém de um grande número de patologias: neuropatia diabética, pessoas que perderam membros, acidentes, fibromialgias, grandes gangrenas, dores lombares graves e dores de cancro e induzidas por quimioterapia», enquadrou.
Esta condição «pode evoluir para uma doença que tem, por si só, uma identidade». Muitas vezes, explicou Pedro ao Sul Informação, «nós até podemos resolver o problema que causou a dor, originalmente, mas depois, como ela esteve lá durante muito tempo – 3 ou 6 meses, depende do autor -, o sistema nervoso, que costuma compensar a dor, fica estragado para sempre».
Um «exemplo clássico» é a dor fantasma que sentem as pessoas que perderam membros. Também muitas pessoas que se sujeitaram a quimioterapia acabam por desenvolver dor crónica, «independentemente de terem curado o cancro».
«Mais do que uma em cinco pessoas no mundo sofrem de algum tipo de dor crónica. É muita gente!», afirma o co-fundador da Sea4Us, que fala num «flagelo mundial» que traz perdas de qualidade de vida.
«Há questões societárias graves. Os homens, por exemplo, têm muitas vezes vergonha em admitir. Há quem não se consiga concentrar, o que resulta numa rentabilidade baixa. Algumas, como as dores na cabeça, são a causa de uma grande percentagem de suicídios», ilustrou.
A relação desta potencial revolução nos medicamentos para a dor crónica com os mares de Sagres é muito íntima. «O analgésico é feito à base de um composto de origem marinha, obtido nos mares de Sagres, onde temos a nossa sede e a grande razão para estarmos ali sediados. Temos outros projetos em pipeline que vêm da nossa riqueza e da nossa biodiversidade que, quanto a mim, têm o seu expoente máximo ali na Costa Vicentina».
«Já tenho muitos anos de mergulhador. Obviamente que Sagres não tem aquelas coisas espetaculares que tem os Açores, como as baleias e afins, mas, ao nível da fauna incrustante, dos pequenos animais e invertebrados, a riqueza é muito grande. E essa é que nos interessa: as anémonas, os cnidários, as alforrecas e esponjas», acrescentou Pedro Lima.
Em causa, o facto destes animais «usarem compostos para se defender», nomeadamente venenos, «que são neurotóxicos e, caso consigamos degradá-los e decompô-los, podem esconder coisas muito importantes, como analgésicos, anestésicos, tratamentos para dores do cancro, anti-inflamatórios, anti-oxidantes e etc.».
No fundo, é do casamento entre a neurofisiologia, área a que está atualmente mais ligado (é coordenador de um centro de investigação nesta área da Nova Medical School), e a biologia marinha – «sou biólogo marinho de formação e de coração» – que nasceu a Sea4Us.
Há muito tempo que os princípios e substâncias ativas usados pela indústria farmacêutica são, no essencial, os mesmos, o que leva Pedro Lima (e muitos que trabalham neste setor) a considerar que é preciso encontrar «uma nova química». Esta «pode ser descoberta no mar e é essa a missão a que nos propomos».
«O mar está cheio de substâncias neuroativas, uma riqueza ecoquímica deslumbrante, desenvolvida ao longo de muito tempo. E ela não é acessível ao engenho humano, exatamente por ser fruto dessa adaptação de milhões e milhões de anos», acredita.
O desenvolvimento deste analgésico está a ser feito sob o “chapéu” do “Drug Discovery and Development Platform” da empresa, «uma plataforma que aplica novas abordagens de biotecnologia para explorar compostos derivados do mar para o desenvolvimento de novos produtos farmacêuticos».
«Estamos a procurar substâncias que sejam relevantes no tratamento de doenças que são um problema global, sem solução, atualmente. Temos uma linha de investigação com o cancro, outra com doenças autoimunes, também temos com vários tipos de dores», contou ao Sul Informação o responsável pela empresa.
Tendo em conta que Pedro Lima e outros membros da equipa da Sea4Us são neurofisiologistas, especializaram-se «em substâncias neuroativas. Queremos desenvolver analgésicos, medicamentos para doenças autoimunes relacionadas com os nervos, entre outros».
O projeto mais avançado é o “Sea4Pain”. O analgésico que a Sea4Us desenvolveu já foi testado em laboratório, em modelos, mas também em cobaias, neste caso ratinhos, com sucesso. Mas há sempre «um risco», pois isso não significa que funcione de igual modo em humanos, «embora tudo indique que sim».
«O que estamos a fazer agora é perfilar uma bateria de testes muito caros, para chegar às autoridades e provar que o medicamento é seguro para os humanos», explicou Pedro Lima.
O co-fundador da empresa algarvia confessou ao nosso jornal que o processo até obter autorização para testar um medicamento em humanos é «muito extensivo, exaustivo e muito caro (risos). É um caminho muito moroso e que requer muito investimento. Em média, um medicamento leva 12 anos até entrar no mercado. Nós temos ainda poucos anos de existência, pelo que ainda vai demorar algum tempo».
Mas Pedro Lima acredita que o dia em que se poderá dar o próximo passo e validar esta terapia também para humanos há-de chegar e mostra uma profunda crença de que será algo benéfico. «A primeira pessoa a ser injetada serei eu, porque acredito piamente que vai funcionar. Tudo me leva a acreditar nisso. Se funcionar comigo, nunca mais ninguém nos pára», disse.
Apesar do modelo de negócio da empresa prever a venda do produto desenvolvido, que já está a ser patenteado, numa fase de pré produção em grande escala, «provavelmente logo após a primeira fase de testes em humanos», tendo em conta os custos envolvidos, a Sea4Us quer levar o seu esforço o mais longe possível para garantir «que a origem do mar português e de Sagres não se perde, que esteja bem identificada, e que isto não caia na gaveta de uma qualquer multinacional».
Os medicamentos desenvolvidos pela Sea4Us baseiam-se em venenos ou toxinas produzidos por animais, mas a intenção não é extrair os compostos utilizados de seres vivos, mas sim replicá-las com processos laboratoriais, através da biotecnologia.
«A nossa ideia não é ir ao mar e retirar, retirar, retirar. Nós observamos a natureza e tiramos de lá quantidades suficientes, mas pequenas, para purificarmos, chegar ao composto puro, para o podermos replicar com métodos não invasivos e não poluentes», explicou ao Sul Informação.
O co-fundador da Sea4Us não esconde a vontade de, um dia, poder fixar-se, definitivamente, na vila de Sagres, onde está instalada a sede da empresa, mas onde também é levada a cabo «a prospeção, identificação e tratamento primário» dos compostos que são usados nos medicamentos, num laboratório que tem um protocolo com a Universidade do Algarve. «É um centro a partir do qual esta riqueza explode para uma rede de ciência»
Esta rede, «o spin científico-tecnológico», espalha-se por vários locais. A Sea4Us trabalha em conjunto com a Universidade Nova de Lisboa, onde Pedro Lima coordena um centro de investigação. «Temos um protocolo muito bom com a Nova Medical School. Usamos os laboratórios e os equipamentos, dando em troca teses, inovação e um revenue. Também temos colaborações com a Universidade do Minho, com a Universidade de Lisboa e algumas estrangeiras, como a de Aberdeen (Escócia), de Paris e da Noruega».
Neste projeto, também está envolvido «um conjunto de investidores que tem demonstrado uma grande coragem, nomeadamente a farmacêutica Ben , a empresa que faz o Benuron. É um dos cerca de dez investidores que nos têm ajudado nesta primeira fase».
O co-fundador da Sea4Us não tem problemas em revelar pormenores do projeto, nem sequer os animais usados na investigação que está a ser levada a cabo – as esponjas – pois «teria de viver muitos anos para conseguir explorar uma percentagem ínfima do que existe aí», o que o leva a considerar que «quanto mais concorrência, melhor».
«Tomara que possamos fazer a diferença neste mundo e que possamos aliviar a dor a tantos milhões de pessoas», resumiu Pedro Lima.
A Sea4Us foi uma das quatro empresas portuguesas a ser premiadas na última leva do SME Intruments da Comissão Europeia. «Nós já tínhamos tentado antes e até já tínhamos ultrapassado o limiar para sermos financiados, mas não havia dinheiro suficiente para todos. Isso espelha quão competitivo é. Já tínhamos obtido dois selos de excelência. Antes, a avaliação tinha sido muito boa. Neste caso, foi excelente, passámos em muito o limiar», adiantou ao nosso jornal o diretor desta empresa.
Antes, este prémio já havia sido atribuído a duas empresas algarvias, a Gyrad e a Sparos, que nasceram, ambas, no seguimento do concurso Ideias em Caixa do CRIA – Divisão de Empreendedorismo e Transferência de Tecnologia da Universidade do Algarve.
Fotos: Sea4Us
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