Crónica do Sudoeste Peninsular: A circunstância do Estado-exíguo e a reforma do Estado

Tomo de empréstimo o título do livro do Prof. Adriano Moreira “A circunstância do Estado-exíguo” (Editora Diário de Bordo, 2011) […]

Tomo de empréstimo o título do livro do Prof. Adriano Moreira “A circunstância do Estado-exíguo” (Editora Diário de Bordo, 2011) para fazer algumas reflexões a propósito da nossa especial condição, sobretudo quando associamos Estado-exíguo e reformas do Estado e numa conjuntura em que o secular “conceito estratégico nacional” parece cada vez mais redundante.

A minha pergunta de partida é simples: está um estado-exíguo em condições de realizar, com êxito, as designadas “reformas de estado”, que, no último congresso do PSD voltaram a ser reclamadas? Com efeito, existem alguns fatores críticos que até 2050 farão sentir ao estado-nação português a sua peculiar exiguidade.

E já não falo dos “cisnes negros” que poderão eclodir a qualquer momento no sistema de relações internacionais, provenientes, por exemplo, do Norte de África, do Médio Oriente, do Leste Europeu ou, mesmo, das relações peninsulares.

Vejamos alguns desses fatores críticos:

1. O declínio demográfico
Basta, para tanto, declinar o índice de fecundidade com o índice de envelhecimento e teremos o primeiro traço de exiguidade que nos fará passar de 3,1 para 1,4 entre 2016 e 2050 no que diz respeito ao número de pessoas em idade ativa por cada idoso.

Primeiras reformas em pano de fundo: que política de natalidade, que políticas para a terceira idade, que política para a idade de reforma, que programas de envelhecimento ativo, que políticas de saúde pública?

Mas, também, que políticas de estabilização migratória entre o sul e o norte da Europa para evitar o suicídio demográfico dos países do Sul da Europa?

2. As correntes migratórias
As correntes migratórias serão de vária ordem: as correntes por razões de ordem económica, os refugiados de guerra, os refugiados ambientais devido às secas severas e à fome, os asilados por razões políticas, os fluxos temporários por razões de estudo, trabalho e visitação e, finalmente, o regresso das diásporas por algumas das razões antes referidas.

Pensemos no caso português, nas várias diásporas espalhadas pelo mundo e na elevada sensibilidade e risco em que algumas se encontram neste preciso momento.

Neste contexto, as políticas migratórias em sentido amplo, no interior da União Europeia e em relação a países terceiros, serão uma prioridade essencial a muito curto prazo e para a década 2020-2030.

Acresce que o envelhecimento da população europeia pode acelerar ainda mais o declínio demográfico dos países do sul da Europa cujos trabalhadores serão seduzidos para emigrar para o norte da Europa em busca de profissões e salários melhor remunerados.

3. A revolução digital, o emprego e o mundo do trabalho
No mesmo sentido, as tecnologias da 4ª revolução industrial irão alterar profundamente a estrutura do emprego e o mundo do trabalho tal como os conhecemos hoje.

Um dos fatores contingentes nesta área é a assincronia nas relações entre as diversas atividades económicas, isto é, os hiatos que se produzirão na reconfiguração do emprego e dos novos mercados de trabalho.

Dito de outro modo, se não tomarmos medidas cautelares que preparem e previnam a transição digital, o desemprego friccional crescerá rapidamente, assistiremos a um abaixamento da estrutura e do nível dos rendimentos salariais e haverá uma décalage apreciável na reação do mercado de trabalho à nova situação.

Neste contexto, as políticas ativas de emprego, a empregabilidade e a formação ao longo da vida, a proteção social num mercado de trabalho intermitente e as novas formas de financiamento da segurança social serão as políticas fundamentais para a década de 2020-2030.

4. A turistificação crescente do território
Uma outra vaga de fundo, em muitos sentidos convergente com as tendências anteriores, diz respeito ao ciclo turístico atual.

De facto, a turistificação crescente do território, sendo uma hipótese em aberto, pode arrastar-nos para uma situação de “país low cost generalizado”, local de destino de uma boa parte da população sénior da Europa e onde uma população simpática e acolhedora está cada vez mais “gentrificada” e empobrecida, vivendo e sobrevivendo à custa de diversas fontes de rendimento complementar que vão do salário mínimo, aos biscates e ao alojamento local.

Também aqui é necessário tomar medidas cautelares e prevenir que esta eventualidade se torne uma realidade inelutável e independente da nossa vontade. O país não pode adormecer melancolicamente ao sol, ao sal e ao sul da turistificação total.

5. As alterações climáticas e o abandono do território
As alterações climáticas e em especial os eventos severos e extremos de seca podem trazer-nos algumas surpresas muito desagradáveis se teimarmos em retardar determinados investimentos de mitigação e adaptação, em particular no que diz respeito à gestão de recursos hídricos.

É preciso evitar a todo o custo que o abastecimento de água às populações possa conflituar com a agricultura e com o fluxo turismo, pois esse conflito recorrente é o primeiro passo para um abandono progressivo do território, por maioria de razão se forem desencadeadas guerras da água com Espanha.

6. O empobrecimento geral e a ascensão de um movimento nacionalista
Assistimos em toda a Europa a uma erosão dos valores democráticos e à correlativa ascensão de movimentos nacionalistas à boleia dessa desafeição política e emocional.

Em Portugal, poderemos estar muito perto de sabermos se um empobrecimento geral da população nos conduzirá, tarde ou cedo, a um movimento nacionalista como, de resto, já acontece em toda a Europa.

Se não corrigirmos rapidamente as desigualdades económicas e sociais e se algum imponderável grave irromper na cena europeia, mediterrânica ou mesmo peninsular, então, sem um suplemento de futuro assegurado tudo pode acontecer.

Nota Final: Estado-exíguo e reforma do Estado
Do que se disse, decorre imediatamente uma contradição insanável, a saber, sem crescimento económico elevado, acima dos 5 a 6% de crescimento nominal anual nos próximos anos e uma taxa de poupança muito superior à atual, a equação orçamental do país estará posta em causa devido ao elevado volume de dívida pública e dívida privada.

Na falta de poupança pública e privada, ficaremos nas malhas dos mercados internacionais e da ajuda europeia em regime de “liberdade condicional” e sob condições estritas.

Nestes termos, o estado-exíguo não estará disponível para grandes reformas de Estado. O mesmo se diga em relação às próximas fases da integração europeia, correspondentes à segunda fase da união económica e monetária e ao lançamento das primeiras pedras da união política europeia (UPE).

Neste contexto, a reforma do estado, em toda a sua amplitude, exige um imperativo categórico: um acordo de regime interpartidário para duas legislaturas (2019-2023-2027), uma revisão constitucional no quadro da UEM II e da UPE, um programa de reforma do Estado para duas legislaturas e, por último, mas em simultâneo, um programa de desenvolvimento económico e social para duas legislaturas no âmbito do próximo período de programação de fundos europeus.

Este imperativo categórico teria os seguintes objetivos: trazer a despesa pública total para 40% a 42% do PIB em 2027, a carga fiscal para níveis compatíveis com a competitividade fiscal (por exemplo, uma flat rate de 15% em 2027), o crescimento do PIB para taxas próximas de 5% a 6% de crescimento nominal anual, o défice orçamental primário para valores positivos entre 2% e 3% em 2027 e o défice global para valores próximos do equilíbrio orçamental e trazer, finalmente, a amortização da dívida pública para valores próximos de 3% anuais, de acordo com o que estabelece o tratado orçamental da união europeia.

Quanto à reforma do Estado, propriamente dita, ela visaria não apenas obter maior eficiência na utilização de recursos escassos, mas, também, reduzir substancialmente o “partido-estado” e a constelação de interesses e poderes que gravitam em redor do Estado-administração e acumulados ao longo dos últimos quarenta anos.

A reforma do Estado e da estrutura da despesa pública reportam-se, assim, às grandes funções do Estado, a saber:

– O Estado soberano: rever as missões de soberania e a estrutura de poderes soberanos,

– O Estado social: rever os regimes de proteção social na sua aceção mais ampla e a sustentabilidade da segurança social,

– O Estado fiscal: rever a estrutura dos benefícios e a carga fiscal tendo em vista o crescimento económico,

– O Estado empresarial: rever o programa de parcerias público-privadas (PPP) e os limites do “perímetro empresarial” do Estado,

– O Estado regulatório: rever a legislação e o modelo operatório da administração autónoma do Estado tendo em vista promover a transformação e a transição digitais,

– O Estado administrativo: rever a descentralização de competências e reformar o Estado Local e Regional.
Estas são as grandes tarefas para 2019-2027 no quadro do próximo período de programação dos fundos europeus.
Oxalá o crescimento económico ajude, não obstante o paradoxo verosímil, e bem português, de que um crescimento mais elevado possa abrandar ou mesmo adiar as reformas do Estado. O “partido-estado” não vai desistir assim tão facilmente.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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