Crónicas do Sudoeste Peninsular: Os terroirs policromáticos do nosso mundo rural

O terroir é um conceito complexo e estruturado, geralmente associado ao vinho francês de algumas regiões muito conhecidas. O terroir, […]

O terroir é um conceito complexo e estruturado, geralmente associado ao vinho francês de algumas regiões muito conhecidas.

O terroir, como tal, participa na personalidade final do produto vitivinícola, como se fosse uma assinatura de cada região produtora. Os elementos fundamentais são o solo, o clima, a altitude, as chuvas, o relevo, as castas utilizadas e a ação humana sob a forma de relações familiares e coletivas, de cultura e tradições comuns.

Esta é, porém, a aceção tradicional de terroir, uma aceção, digamos, monocromática. Hoje em dia, as tecnologias de informação e comunicação (TIC) e a vaga de inteligência e criatividade protagonizada pelas empresas da economia digital chegarão, também, ao nosso interior mais profundo e remoto. Está, de resto, em marcha uma revolução silenciosa feita de diversidade e pluralidade de atores, agriculturas e modelos de negócio.

Tudo isto parece um discurso paradoxa,l no preciso momento em que fazemos o luto da tragédia dos incêndios. Ora, é absolutamente necessário contrariar este discurso pessimista e afirmar a vitalidade da agricultura portuguesa, em especial, a essencial policromia dos nossos inúmeros microclimas e ambientes agroecológicos, seja das vinhas, dos olivais, dos pomares.

I. Interioríssimo, um universo com muitos terroirs e nichos de mercado
Num país com pouco mais de 200 quilómetros de largura, a “diferença do interior” deve ser vista e procurada como uma vantagem comparativa, um imenso hinterland com estreitas ligações a uma ou mais áreas metropolitanas.

As boas vias de comunicação e as rápidas conexões digitais acabarão, muito em breve, com as anteriores dicotomias paralisantes cidade-campo.

É preciso, porém, “mapear as vantagens do interior” e suscitar para elas novos atores, protagonistas e ideias de projeto. Os atuais não parecem estar à altura deste grande desafio.

Se tudo correr bem, o chamado “Interior” passará a ser, dentro de alguns anos, o nosso “colar de pérolas” mais precioso.

II. Os sinais distintivos territoriais (SDT)
Estamos em 2017, os terroirs “não estão obrigados” a ser apenas a assinatura de um só produto (o terroir monocromático).

O universo material e simbólico de uma região contém muitos “sinais distintivos territoriais”, muitos deles ocultos ou ignorados.

É a perceção de uma certa iconografia regional que irá revolucionar o conceito de terroir tal como ele é habitualmente entendido (como uma espécie de santuário).

Precisamos, pois, de investir mais na delimitação e identificação desses sinais distintivos e de conceber, a partir deles, mais uma grelha de leitura do território que alimente a diversidade e pluralidade do terroir policromático.

III. A iconografia do terroir policromático
Não será difícil, então, construir uma nova narrativa – uma iconografia – a partir dos ícones e referenciais simbólicos presentes no mundo rural, pois eles são abundantes.

Eis apenas alguns exemplos retirados desse universo referencial e que, no seu conjunto, compõem o ambiente inspirador do terroir: o silêncio do horizonte longínquo, a espiritualidade e o génio dos lugares, a inspiração transbordante da natureza, o sentido religioso do recolhimento, a beleza de um quadro pictórico, o encantamento de uma paisagem literária, os mistérios da vida natural, enfim, a nostalgia da vida simples.

Os territórios inteligentes e criativos do futuro terão aqui matéria-prima suficiente para trabalhar e produzir novos conteúdos criativos e culturais.

IV. A cenografia de um território-desejado
Os sinais distintivos territoriais e a sua especial iconografia abrem-nos a porta para diferentes cenografias do território.

As start-up da economia digital, sobretudo as empresas do marketing digital e da publicidade, aproveitarão a oportunidade e tomarão o mundo rural como um décor para as suas próximas incursões e representações.

O naturalismo romântico do nosso rural profundo será um trunfo e um ativo preciosos. Não será apenas a agricultura de precisão com os seus agribots, será, também, uma “agrocultura” que chegará com os neo-rurais neo-românticos.

O mundo rural e o campo tornar-se-ão uma espécie de cenário natural para as produções low cost da cibercultura mais variada.

V. A coreografia e a sociabilidade colaborativa
Com um novo décor e novos atores e protagonistas teremos, seguramente, uma outra coreografia também. Ao lado do capitalismo puro e duro que permanecerá, teremos, cada vez mais, uma economia colaborativa que tornará o capitalismo mais popular e genuíno, no sentido próprio dos termos.

Formar-se-ão territórios-rede e atores-rede, onde o capital social será tão ou mais decisivo que o capital financeiro. A coreografia política e social será mais complexa e muito diferente da atual, pois a economia inter-pares, “peer to peer, P2P”, com mais inteligência coletiva e solidariedade social tomará, de forma gradual, o lugar da economia mais extrativa e predadora.

VI. A inteligência coletiva, P2P, uma plataforma colaborativa para o terroir
Esta será a principal tarefa do próximo futuro, a criação de uma inteligência coletiva territorial capaz de enquadrar o rural profundo.

Não tenho dúvidas, haverá mais campo na cidade e mais cidade no campo. Desde a agricultura vertical na cidade, à agricultura acompanhada pela comunidade, às novas agriculturas periurbanas, à agricultura de precisão e às agriculturas de nicho, será cada vez mais um continuum ecológico ao longo de 200 km.

Nesses corredores verdes, os terroirs serão a “cereja em cima do bolo” e uma verdadeira atração para os neo-rurais que chegarão curiosos para ocupar o interior do país, que se tornará a prazo, quem diria, um interior verdadeiramente cosmopolita.

Uma plataforma colaborativa é uma aplicação informática de apoio à gestão e uma primeira ferramenta fundamental para montar esta inteligência coletiva territorial. Mas esse é apenas o primeiro passo.

VII. Os embaixadores do terroir policromático
Os terroirs, pela sua própria natureza, são uma construção longa e delicada, uma verdadeira filigrana sociocultural, cuja permanência depende muito do capital reputacional que for possível reunir à sua volta.

Para manter essa reputação, já não é suficiente o valor que lhe é transmitido pela imagem de marca do produto original, quantas vezes capturada por uma turistificação precipitada do território.

Para manter o bom senso e o bom gosto em redor do terroir e reinventar o universo simbólico dos seus sinais distintivos, a região “estará obrigada” a escolher os seus embaixadores mais representativos e reputados, os seus rostos de maior distinção.

VIII. O modelo de governança do terroir policromático
O terroir tem geralmente uma governação tácita tecida ao longo dos anos. Todavia, para esta nova fase mais cosmopolita, precisará de constituir um território-rede policromático (T-R) animado por um pivot que nós designamos de ator-rede.

O ator-rede é, digamos, o mestre de cerimónias do terroir, mas que funciona segundo uma lógica de curadoria do território. Entre as suas tarefas, contam-se: a escolha dos SDT, a sua narrativa iconográfica e os cenários da sua representação (que melhor polinizam o território), o mapeamento dos nichos ecológicos e seus habitats, o mapa gravitacional dos atores locais e regionais e o grau de conectividade do terroir em função da sua estratégia operacional.

Nota Final: de espaços-produção a espaços-produzidos

Os territórios mais remotos e hostis serão um desafio à imaginação tecnológica e digital e aguardamos, a todo o tempo, que as universidades, os centros de investigação e as start-up mais ousadas sejam capazes de nos trazer novidades na forma de ocupar estes territórios.

Progressivamente, os terroirs do nosso mundo rural deixarão de ser espaços-produção para serem, cada vez mais, espaços-produzidos, se quisermos, territórios de destino e visitação. O marketing digital irá forjar uma imagem de marca cheia de glamour (e pastiche), os novos embaixadores farão a boa publicidade do place branding, a chegada de muitos neo-rurais talentosos revolucionará os tradicionais terroirs de produção.

Porém, à nova economia digital, para fazer prova de vida, não bastam as comunidades online criadas de geração espontânea em espaços de coworking ou fablab municipais ou cooperativos. Também não bastam as start-up geradas em incubadoras e aceleradoras, que aí vegetam sem um mínimo de sustentabilidade. Há, de facto, um longo caminho a percorrer entre o conforto de uma rede digital gerida por uma comunidade online e o desconforto de um problema real gerido por uma comunidade real, municipal ou associativa.

Os terroirs do Alentejo Vinhateiro, do Dão e Bairrada, do Alto Douro Vinhateiro, do Minho Verde, entre outros, são um excelente ponto de partida para os futuros terroirs policromáticos do nosso mundo rural.

As designadas rotas do vinho são, neste contexto, apenas um embrião do muito que ainda falta fazer. Queremos crer que os neo-rurais de todas as extrações e proveniências já preparam essa grande jornada que nos conduzirá, gradualmente, dos terroirs de simples produção aos terroirs de produção e destino, digamos, aos terroirs mais policromáticos.

Os fogos florestais do último Verão não afetaram, felizmente, os nossos principais terroirs, mas deixaram um aviso sério à gestão integrada dos territórios rurais do interior. Mais uma razão para estar avisado e não baixar a guarda.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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