Medronho climático

As sessões da Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas estão cada vez mais parecidas com a boa aguardente […]

As sessões da Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas estão cada vez mais parecidas com a boa aguardente de medronho: batem forte na altura, mas depois não deixam ressaca nenhuma.

O que, neste caso, é mau.

Veja-se a recentemente concluída COP 23, na cidade alemã de Bona. Tinha tudo para ser histórica: realizada no coração do sistema económico e político da Europa industrializada, com a participação inédita de um arquipélago do Pacífico, as Ilhas Fiji – ameaçadas pela subida do nível do mar e que, de resto, presidiram aos trabalhos – e com a principal potência do Ocidente, os Estados Unidos da América, em ciclo de ruptura com os compromissos internacionais.

Um teste de fogo, portanto. No entanto, alguém ouviu falar de algum resultado?

Nesta sessão, em que a agenda procurava os melhores e mais eficazes mecanismos para implementação das frágeis decisões do Acordo de Paris, assinado em 2015, era necessária uma afirmação de confiança e uma demonstração de competência e solidariedade por parte da comunidade internacional.

E não por causa dos EUA – a comitiva norte-americana participou na mesma e trabalhou com a mesma atitude de anos anteriores, a par da delegação específica de contestação à decisão de Trump, a “We are still in” – mas porque urge realmente agir.

Mesmo assim, os países industrializados, passados precisamente 20 anos sobre a assinatura do Protocolo de Kyoto, onde foram estabelecidas metas para a redução da concentração atmosférica de gases contribuintes para o efeito-estufa (revistas em 2012, através da Emenda de Doha), parecem ter esquecido o compromisso para com os objectivos definidos para 2020, olhando agora para o horizonte de 2030 e acenando com a “cenoura” do abandono do carvão.

Isto passa uma mensagem, principalmente aos países ditos em vias de desenvolvimento, de que a palavra dada e escrita não tem afinal valor, e que os principais emissores não estão assim tão empenhados nesta questão, empurrando-a sempre com a barriga. Não importa então o tamanho da cenoura, pois os coelhos estão conscientes de que é sempre falsa…

Não apenas se quebra o compromisso e o sentido de esforço comum e partilhado, como, pior que tudo, passa a mensagem a todos os cidadãos do Mundo de que, claramente, não podemos contar com os actuais decisores para a resolução deste problema.

Porque, apesar do propalado progresso da Humanidade, não conseguimos olhar para ela como um todo solidário. Porque não há nas elites dominantes de hoje a dimensão intelectual, de Estado ou simplesmente humana para conseguir ver o que é realmente importante. Ver que, muito acima das efabulações, golpes e jogos da Economia, está, tão só, a sobrevivência da espécie humana em condições de dignidade. E que os outros somos nós também.

Porque é disso que se trata, nunca será demais lembrar. Não estamos à beira de nenhum cataclismo planetário, de nenhum colapso do ecossistema global. O planeta já foi uma bola de fogo, e a partir daí gerou vida. Já atravessou períodos climatericamente muito mais complicados, já gerou e extinguiu espécies bem maiores do que nós. Sobreviverá, reequilibrar-se-á, reinventar-se-á, prosperará.

Resta saber se nós fazemos parte desse processo ou se saltamos fora do barco, entretanto. Porque o risco que corremos é o de danos, eventualmente irreversíveis à escala temporal humana, nas condições de vida que temos como amenas e sãs, e propícias a um equilibrado desenvolvimento das nossas actividades. A reorganização geográfica em adaptação a novas realidades será sempre possível, mas aí seguramente à base de guerras e tragédias humanas incalculáveis. Basta olhar para o Mediterrâneo.

A atitude dos “líderes” mundiais – não serão antes meros chefes? – já quase faz lembrar a rábula do Ricardo Araújo Pereira em torno da tomada de posição do então comentador Marcelo Rebelo de Sousa no referendo acerca da despenalização do aborto: “É um assunto vital para a salubridade do planeta na óptica da vida humana? É. Estamos então a colocá-lo no centro das nossas prioridades e a fazer tudo o que podemos? Não. E toleramos isso? Sim”.

Um exemplo cabal foi a mais recente edição do programa “Prós e Contras” que, a propósito da seca, abordou também a questão das alterações climáticas. Nela, o presidente da Câmara Municipal de Loulé, numa participação a partir da plateia, acertou de forma desempoeirada em todos os chavões, da mitigação à adaptação.

Instado a explicar uma medida concreta que fosse da Estratégia Municipal de Adaptação às Alterações Climáticas de Loulé, não foi capaz. O melhor que conseguiu foi explicar que algumas medidas originam a contratação de programas, que depois vão originar acções.

Isto acontece não por falta de sensibilidade ou de competência, que seguramente tem, ou porque não implemente quaisquer medidas – algumas no terreno à vista de todos, como a nível energético – mas porque a prioridade do tema se esgota no discurso.

Não tem lugar nas dinâmicas efectivas que dominam o exercício político-partidário dos nossos dias. Pelo contrário, a implementação de uma nova atitude perante o fenómeno das alterações climáticas e das suas principais forças motrizes implica o colapso, por substituição, do sistema económico-financeiro que financia, alimenta e suporta o actual sistema político e a sua mundivisão.

Sobramos então nós, cidadãos, eleitores, consumidores, Zés-ninguém, para lançar mãos ao que é nosso, e exigir mudança, promovendo-a desde logo nos nossos hábitos. Ou então aguentar as consequências.

Também em Bona, mas em 1789 (curiosamente ano da Revolução Francesa e da aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão), nasceu Peter Joseph Lenné, um insigne arquitecto paisagista, cujos jardins são hoje Património Mundial da UNESCO.

O homem foi tão importante que o seu nome é hoje perpetuado através de um prémio, naquela que é considerada a maior competição de ideias a nível mundial em termos de Arquitectura Paisagista, abrangendo a concepção de espaços abertos que vão desde jardins a regiões.

E nós, neste nosso tempo, que legado deixaremos, e o que dirão de nós daqui a 200 e tal anos?

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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