Vira o disco e arde o mesmo

As palavras faltam quando se tenta iniciar um texto sobre incêndios, neste fatídico ano, em que a pira funerária do […]

As palavras faltam quando se tenta iniciar um texto sobre incêndios, neste fatídico ano, em que a pira funerária do nada que restava da confiança no Estado arde ainda em Outubro.

Faltam porque já foram todas usadas, repetidas, gastas, exauridas. Faltam porque empalidecem face à dimensão da tragédia que pretendem descrever e às imagens que nos assaltam. Faltam porque as dezenas de mortos de Pedrógão, Coimbra, Vouzela, já não ouvem. E faltam também porque o seu destino, está visto, é serem ignoradas.

Mas calar é desistir em definitivo.

Não que seja propriamente de palavras que necessitamos, neste tema dos fogos. É acção o que nos falta, e para revolucionar, de alto a baixo, a forma como encaramos o território e a sua administração.

O principal combustível dos incêndios que nos consomem é a desestruturação das nossas paisagens e a falta de preparação para um elemento que lhes é ecologicamente familiar: o fogo.

Seja por erros crassos de ordenamento do território, desinvestimento no tecido rural, simplificação ecológica, despovoamento, o que seja, o resultado é uma paisagem desorganizada, devoluta, morta em vida.

É por isso que o fogo se propaga errática e descontroladamente, pois segue o rastilho de desordem que diante dele se coloca. A sua dimensão monstruosa é apenas a medida de magnitude dos erros cometidos.

Soma-se a mão que atira o cigarro janela fora, a mão que inicia a queimada, a fogueira, a mão que rega com gasolina e ateia o inferno. Embora custe a muita gente ver isso, são mãos dadas no crime. Negligência e inconsciência queimam e matam tanto quanto o dolo, e merecem a mesma tolerância: nenhuma.

Dizer isto no País que elege autarcas condenados para voltar ao galinheiro tem o seu quê de ridículo.

Talvez também por isso o relatório “Análise e apuramento dos factos relativos aos incêndios que ocorreram em Pedrogão Grande, Castanheira de Pera, Ansião, Alvaiázere, Figueiró dos Vinhos, Arganil, Góis, Penela, Pampilhosa da Serra, Oleiros e Sertã, entre 17 e 24 de Junho de 2017”, elaborado por uma comissão independente de especialistas mandatada pela Assembleia da República, não apenas é um déjà vu de tantos outros documentos do estilo que têm vindo a ser produzidos desde há pelo menos década e meia, como já parece ter, juntamente com as suas recomendações, destino: o caixote do lixo.

Isto porque o Governo já o veio desvalorizar e relativizar, talvez por dele não constar um único elogio a ministros ou, bem vistas as coisas, a quem quer que seja. Pior, expõe, entre muitas outras coisas, como a actuação propagandista dos políticos em cenários de crise prejudica a operacionalidade, sacrificando tudo em nome da vaidade e da necessidade de aparecer.

Se ao menos caracterizasse Constança Urbano de Sousa como a Ronalda dos fogos, António Costa como o seu Jorge Mendes e os amigalhaços da Protecção Civil com licenciaturas aldrabadas como a filharada de encomenda, outro carinho haveria para com tal documento.

Assim não, ficam apenas expostos como serenos cangalheiros que, de pior dia das suas vidas em pior dia das suas vidas, vão contabilizando um tétrico pecúlio de cadáveres sob desgovernadas tutelas.

Sendo certo que as demissões não são passos de prestidigitação que permitem a resolução imediata de qualquer problema, a remoção de incompetentes do processo será sempre um excelente primeiro passo.

Até porque tão pouco o problema é apenas deste Governo (que, não sendo culpado, é completamente responsável).

Não é sequer do anterior, nem dos outros antes individualmente. É o maior falhanço da nossa democracia – incluindo heranças passadas que recebeu – enquanto todo. Porque é uma questão de preparação, antecipação, planeamento, ordenamento, organização, estratégia numa lógica de interesse comum. Tudo aquilo em que somos péssimos.

E a culpa reside principalmente em todos nós, alienados que estamos e que somos enquanto povo.

Indiferentes às questões de ambiente e de ordenamento do território, coniventes com o fogo enquanto negócio, com o abandono e a monocultura como soluções, apáticos ante o primado da incompetência e da ignorância na decisão e na gestão, sustentada pelo compadrio das nomeações para cargos apenas por favor partidário, amizade ou laços de família.

Comemos, calamos e esquecemos.

Temos que inscrever estes dias na nossa memória.

Não na memória dos #prayfor e améns virtuais, dos likes digitais, das partilhas de “árvores bombeiras” e outras ingenuidades boçais.

Temos que inscrever estes dias na memória do horror inimaginável dos que perderam a vida, na dor dos que perderam os seus, no desespero de quem perdeu tudo o que tinha.

Temos que inscrever estes dias na memória presente que é o terror de não saber se estamos a salvo, onde quer que estejamos, se seremos os próximos a ser apanhados.

Só com essa inscrição real e profunda na nossa memória conseguiremos acordar da letargia e tomar o destino nas mãos, enquanto comunidade e País, permitindo-nos construir a nossa sorte.

De outra forma o fogo, com ou sem ignição, continuará a consumir-nos.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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