Crónicas do Sudoeste Peninsular (XXXVII): Vem aí o admirável mundo novo!

Antes que fiquem demasiado deslumbrados com gadgets fantásticos e vídeos hipnotizantes deixem que vos lembre que informação não é conhecimento, […]

Antes que fiquem demasiado deslumbrados com gadgets fantásticos e vídeos hipnotizantes deixem que vos lembre que informação não é conhecimento, conhecimento não é sabedoria e sabedoria não é clarividência. Cada um deles advém do outro e precisamos de todos (Arthur C. Clarke).

Na grande tradição dos romances distópicos – Nós de Yvegeny Zamyatin (1924), O admirável mundo novo de Aldous Huxley (1932), 1984 de George Orwell (1948) e Fahreneit 451 de Ray Bradbury (1953) – estamos, de novo, no limiar de uma “era misteriosa”, aquela que relaciona humanidade e tecnologia, plena de mistério, esperança e muitos perigos. Todos eles falam de condicionamento e manipulação, de vigilância e polícia do pensamento e, no caso de Orwell de novilíngua. Terá a era digital alguma relação com esta tradição distópica?

De facto, estamos, outra vez, no limiar de um admirável mundo novo, em viagem para o universo do ciberespaço. Desta vez, esse admirável mundo novo chega sob a forma de tecnologia exponencial, mas, também, de transhumanismo e pós-humanidade. Vejamos as principais tendências deste admirável mundo novo e olhemos, de seguida, para “um dia normal” aferido e proporcionado pelos algoritmos de serviço. Eis a novilíngua da era digital.

I. As grandes tendências deste “admirável mundo novo”

As grandes tendências deste admirável mundo novo seguem a fórmula dos “três D”: digitalização, desmaterialização e desintermediação.

Desde logo a transformação digital, isto é, a introdução de tecnologias da informação e comunicação no seio de organizações e empresas tendo em vista desmaterializar processos, produtos e serviços. Esta mudança altera os automatismos da organização, a sua eficiência e produtividade e as suas relações laborais, bem como a relação/proporção entre lucros e salários.

Em segundo lugar, a intermediação comercial convencional entre produtor e consumidor é posta em causa e em muitas atividades económicas essa relação é diretamente assumida pelos “pares”, segundo os termos da chamada economia colaborativa ou, mais correntemente, “uberização” da economia, por analogia com a empresa Uber. As mais-valias obtidas na anterior relação comercial são, agora, “distribuídas pelos pares” e pelo novo intermediário digital.

Em terceiro lugar, a nova economia colaborativa só é possível porque os dispositivos móveis (smartphones), as plataformas tecnológicas (uber) e as aplicações (software) estão descentralizados e interligados, usando a grande via arterial que é a internet banda larga.

Em quarto lugar, os dados de todo o tipo recolhidos nos dispositivos fixos e móveis (e que nos dizem respeito) são objeto de uma filtragem e tratamento em grandes centros de dados (Big Data) por intermédio de protocolos e convenções matemáticos chamados algoritmos.

O resultado final desse processamento apresenta-se sob a forma de perfis e padrões de comportamento personalizados, que são depois vendidos a empresas de marketing e publicidade ou diretamente às grandes empresas de distribuição e retalho.

Estes mercados de duas faces, gratuitos a montante e pagos a jusante, são designados de “mercados biface” e são eles que proporcionam as receitas gigantescas às grandes plataformas digitais como a Google e o Facebook.

Em quinto lugar, à “internet dos humanos” junta-se a “internet das coisas” e a sua smartificação. É uma verdadeira revolução na economia do Big Data, só possível com o aumento extraordinário da capacidade de processamento proporcionado pelas tecnologias exponenciais. Todos os objetos poderão, doravante, por meio de sensores, estar ligados a um dispositivo móvel e debitar continuamente toda a informação pré-cozinhada, por exemplo, através de um assistente digital inteligente.

Em sexto lugar, toda esta revolução no Big Data só é possível pela arte combinatória de várias tecnologias exponenciais que têm nos modelos computacionais (cloud computing) e na automatização o seu expoente máximo.

As máquinas inteligentes, o deep learning e a robotização libertam-nos de uma parte importante das nossas tarefas e aliviam o nosso “disco rígido” para outras finalidades.

Em sétimo lugar, o máximo de interdependência e conetividade entre dispositivos permite que uma parte crescente das nossas faculdades de memória e das nossas atividades de rotina e decisão sejam exteriorizadas e entregues aos dispositivos móveis que se assumem como uma espécie de assistentes digitais inteligentes.

Em oitavo lugar, somos, cada vez mais, um “homem aumentado” por intermédio de inúmeros gadgets e dispositivos que nos permitem o acesso à realidade aumentada e virtual; este “acréscimo de humanidade” é tornado possível por via de novos interfaces e implantes entre o cérebro e os dispositivos tecnológicos que tanto podem ser o relógio e os óculos como os nano-dispositivos implantados no cérebro.

Em nono lugar, a aproximação entre o homem aumentado e a máquina inteligente irá progressivamente conduzir-nos ao chamado “ponto de singularidade”, talvez em 2050 (Ray Kurzweil, Google); nessa altura será ultrapassado um limiar perigoso, a máquina inteligente terá adquirido a “consciência da sua autonomia”.

Finalmente, a novilíngua na sua máxima exuberância, a saber, a ideologia do transhumanismo e da pós-humanidade. Não se trata apenas das terapias genéticas e do aumento da longevidade, o mixing entre o homem aumentado e a máquina inteligente pode originar uma nova “espécie humana” e uma derivação para caminhos inominados.

II. Um “novo normal”, a vida ao quotidiano

Aqui chegados, depois desta novilíngua com algoritmos e perfis de comportamento, a sensorização dos objetos, os assistentes digitais inteligentes, as máquinas automáticas e inteligentes, a realidade aumentada e virtual e a bandeira do transhumanismo, estamos, “finalmente”, num “novo normal”.

A vida ao quotidiano neste “novo normal” pode ser extraordinariamente enfadonha e fatigante. Senão vejamos. São 7 horas da manhã, acordo ao som da “internet das coisas” (IOT), o meu assistente digital diz-me qual é a agenda para hoje. Tocam à porta, são os serviços de baby-sitting que tinha contratado a uma start-up no dia anterior. Tocam de novo, é o pet-sitting, um serviço para tratar dos animais.

Enquanto tomo o pequeno almoço trato de encomendar on-demand as compras do hipermercado para entregar ao fim da tarde. De repente, o sensor IOT do esquentador diz-me que há uma fuga de gás, ligo o meu aplicativo“ reparações” para um serviço especializado de canalização. Por causa deste pequeno incidente, contacto o meu espaço de co-working a dizer que vou chegar um pouco mais tarde.

Enquanto aguardo pelo canalizador, aproveito para inscrever mais alguns ativos ociosos que tenho em casa na start-up de aluguer de objetos de ocasião, sempre é um suplemento de rendimento interessante.

Faço o mesmo com o aluguer do meu carro particular, que está com uma utilização pouco frequente, enquanto, do mesmo passo, chamo um carro da start-up local de serviços de táxi para ir até à praça principal. Enquanto estou no táxi, uso a aplicação-serviços domésticos e jardinagem para contratar este serviço lá para casa.

Chego ao espaço comunitário de co-working por volta das 10h30. Neste espaço, sou o responsável da economia crowd, isto é, do crowd funding de pequenos negócios, de crowd sourcing e crowd learning para as áreas de formação e ensino. Temos em curso uma nova start-up na área da IOT para a casa inteligente e estamos a negociar um financiamento participativo para o efeito. Na minha aplicação-funding-lending tenho toda a informação necessária.

À hora de almoço, um colega sugere que encomendemos uma refeição típica do seu país natal, a refeição é pedida na aplicação de refeições ao domicílio.

Depois do almoço, tenho uma sessão via Skype com um colega da OuiShare de Paris por causa de um software que estamos a produzir em modo “comum colaborativo”.

Entretanto, recebo uma mensagem de casa, uma das crianças está com febre. Consulto a minha aplicação serviços-médicos e consigo arranjar um médico para ir a casa ao fim da tarde.

Finalmente, para o crowd learning estou a preparar um MOOC (massive online open course) para um grupo que está inscrito no meu banco do tempo. A propósito, constato no meu banco do tempo que hoje tenho duas horas para dedicar ao voluntariado no hospital de Santo António. Porém, por causa do médico lá em casa, faço a troca com um colega.

São horas de voltar a casa, chamo um táxi uberizado para me transportar a casa. Enquanto faço a viagem de regresso, recebo informação dos meus objetos lá de casa. O esquentador está arranjado, as compras on-demand estão a caminho.

Chego a casa, os serviços de baby-sitting e pet-sitting devolvem-me os filhos e os cães. Depois do jantar, confecionado por mim através de uma aplicação “do it yourself”, os gadgets e os minibots cá de casa tratam das últimas horas das crianças antes do deitar.

Eu tenho de terminar um serviço free lancer em open source já a noite vai avançada, por causa dos fusos horários.

São horas de dormir, os sensores IOT prepararam o meu quarto para uma boa soneca, desde a boa temperatura até à musica de embalar. Sim, por que amanhã é outro dia.

Complicado, talvez, mas já há uma start-up a trabalhar em meta-aplicações para tornar tudo mais simples.

Nota Final
Este é o “novo normal” da nossa vida quotidiana. Um pouco exagerado, talvez. Ficção, eu não diria tanto. Já está tudo no mercado e quem quiser experimentar basta procurar.

Uma nota final quanto ao mix de rendimentos proporcionado por esta vida pluriativa ou uberizada. Aqui também há várias possibilidades. O mix de rendimentos pode contemplar um rendimento salarial a tempo parcial por conta de outrem, um rendimento variável de trabalho independente on-demand, um rendimento em espécie (voucher) pelo trabalho colaborativo e voluntário na comunidade local, um rendimento igualmente variável pelo aluguer e/ou venda de bens de ocasião e, quem sabe, um “rendimento básico universal” no próximo futuro.

Para salvaguardar o máximo de possibilidades é, porém, necessário que os efeitos cruzados de reputação destas várias atividades não causem danos colaterais irremediáveis em alguma destas modalidades de rendimento. Uma tarefa ciclópica, sem dúvida.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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