O último latoeiro do Algarve ainda trabalha lá para os lados de Estiramantens

Cântaros, baldes, candeias, almotolias, caldeiros de vários tamanhos, cataventos, pás para o lixo, instrumentos para a apanha do figo, medidores, […]

Cântaros, baldes, candeias, almotolias, caldeiros de vários tamanhos, cataventos, pás para o lixo, instrumentos para a apanha do figo, medidores, funis, alguidares, tachos, regadores ou até brinquedos, tudo feito em folha de zinco. O trabalho de João Oliveira, aquele que é, de facto, o último latoeiro do Algarve ainda em atividade, pode ser apreciado no alpendre da sua casa em Poço das Figueiras, ali à beira da estrada entre Moncarapacho e Estiramantens.

João Oliveira tem 79 anos e alguns «problemas de ouvido», como diz a sua mulher, Clementina Rosa Maldonado, oito anos mais nova. Ambos são filhos de latoeiros. No caso do Senhor João, «já o meu avô era latoeiro, no Alentejo», contou à reportagem do Sul Informação.

Mesmo sem saber ler nem escrever, o que até poderia ser uma dificuldade para uma profissão em que é preciso medir e fazer contas, João Oliveira, nascido em Vila Nova de São Bento, aprendeu o ofício com o pai e começou a trabalhar como latoeiro em Moura. Mas isso foi há uns bons 65 ou 70 anos, ainda os trabalhos agrícolas e o dia a dia das pessoas se fazia com esses instrumentos e utensílios que saíam das mãos calejadas dos latoeiros ou dos oleiros.

Mas depois, recorda a D. Clementina Rosa, «veio o plástico e veio a decadência. Já não vendíamos quase nada». E foi preciso dar um novo rumo à vida.

Foi então que o casal, já então com dois filhos, veio para o Algarve. Vieram trabalhar como caseiros de uma grande propriedade agrícola em Alfandanga, também no concelho de Olhão. «Trabalhámos no campo vinte anos, a tratar e a apanhar laranja», recorda a D. Clementina Rosa. Ela, uma verdadeira mulher de armas, também não sabia ler nem escrever, porque, quando era miúda, o pai não a deixou ir à escola. «Dizia-me: para que precisas tu de saber ler e escrever? E não me deixava ir à escola, para grande desgosto meu. Comecei a trabalhar no campo com oito anos».

Mas, quando veio para o Algarve, o patrão queria alguém para conduzir o camião carregado de laranjas, e Clementina, então na casa dos 30 anos, verdadeira mulher de armas, foi para a «escola paga», aprendeu a ler e a escrever «qualquer coisinha» e foi tirar a carta. «Aquilo era com provas escritas, eu ainda não sabia ler e escrever lá muito bem, mas à terceira tirei a carta», recorda. E assim passou ela a ser a motorista do camião. Hoje é ela quem conduz o carro do casal…e que vai à internet ver as novidades, com o seu tablet.

Há uns 15 anos, João Oliveira reformou-se. Mas o dinheiro da reforma era baixo e, para complementar, era preciso ganhar mais qualquer coisa. E a sua mulher disse-lhe: «tens o teu ofício, tens boa cabeça, dedicas-te ao que sabes».

E foi assim que, lá pelo início dos anos 2000, João Oliveira voltou ao seu antigo ofício de latoeiro. «De início, as pessoas não ligavam nada a isto, até se riam a dizer que já ninguém queria coisas em lata», recorda o artífice. Mas ele insistiu e começou a percorrer os mercados do Algarve.

«De há uns dez anos para cá, começaram a dar mais valor», diz, com orgulho. E o Senhor João começou a ser chamado para ir às feiras mais especializadas, como os Dias Medievais, em Castro Marim, ou a Moura Encantada, em Cacela Velha.

Agora até há por aí à venda regadores e baldes em metal, mas feitos na China, imagine-se. Mas a D. Clementina Rosa não tem dúvidas: «estar batendo um cântaro ou um balde o dia inteiro é muito diferente! Saem umas peças muito mais bonitas!»

Para fazer um cântaro, daqueles que antes se usavam para o leite ou para o azeite, o velho mestre latoeiro leva «mais de meio dia». «E um regador, então? Leva muita volta, leva muito tempo!», garante. É por isso que as suas peças, não sendo caras, são obviamente mais caras que o mesmo utensílio em plástico ou feito na China.

A maior peça que o Senhor João tem agora para venda é um grande tacho, «daqueles que na serra são usados para cozer os tremoços. Ainda se vai vendendo uma vez ou outra, por acaso».

Hoje em dia, a maior parte dos clientes querem as peças pela sua beleza e raridade, para decoração. «As pessoas têm pegado muito nos baldes, nos caldeiros, mas é mais para decoração. Peças gradas é raro vendermos».

Há uns dias, o Senhor João e a D. Clementina voltaram a estar nos Dias Medievais, em Castro Marim. É que, de facto, a sua arte pouco terá mudado desde os tempos da Idade Média… Mas o latoeiro queixa-se de que, este ano, fez por lá pouco negócio. «As pessoas que compravam alguma coisinha eram do Norte. Este ano, não sei se foi por causa do incêndios, não vieram. O que me valeu foram os espanhóis».

Com um sorriso maroto, o Senhor João recorda «as espanholas que se agarraram a mim para tirar fotografias». «Devo ter muita fotografia e muito filme por esse mundo fora…», constata.

E quanto ao futuro, como será? O velho latoeiro diz que vai continuar a trabalhar «enquanto tiver forças para isso. Com a idade que eu tenho, muito faço eu!».

Dos seus dois filhos, nenhum quis aprender o ofício. Um está emigrado em Inglaterra, outro tem um negócio de distribuição de café, no Algarve.

E aprendizes, tem? «Não tenho já paciência para isso!», confessa. «O jovem que tem de aprender, tem de aprender do fundo, do pequenino ao grande. Isto leva muitos anos a aprender e muitos anos a ensinar…e eu já não tenho paciência».

«Este ofício não se aprende num dia ou dois, leva anos. Para entrar numa peça, leva-se anos. É preciso saber riscar, saber ver o que a chapa dá, quantas peças vão sair dali. Isto requer muito cuidado, é preciso saber mexer na chapa», acrescenta, por seu lado, D. Clementina.

O projeto TASA (Técnicas Ancestrais, Soluções Atuais), que junta artesãos tradicionais e designers, para criar novas peças, desenvolveu há pouco um workshop de latoaria em São Bartolomeu de Messines, como o Sul Informação deu conta em recente reportagem. O Senhor João diz que até o contactaram para ir lá ensinar. «Mas eu já não tenho paciência», insiste.

«Vou fazendo isto à medida que possa. Agora vou parar uns tempitos, para descansar, que em Castro Marim fiquei com os braços doridos, de estar lá a trabalhar ao vivo». A sua oficina está, por agora, abrigada debaixo de uma alfarrobeira, à sombra. Mais para o Outono, há-de trazer as ferramentas do ofício – tesoura, martelo, bigorna, os moldes – para o alpendre onde guarda o carro e as peças já feitas. «Vou-me entretendo aqui», diz. «Isto não dá grande coisa, mas é um complemento», acrescenta a D. Clementina.

 

Contactos:

João Oliveira
Poço das Figueiras
À beira da estrada entre Moncarapacho e Estiramantens (M514-1), numa casa a seguir ao poço que dá nome ao lugar, no lado oposto da estrada.
GPS: 37°06’00.7″N 7°45’31.8″W
Telefone: 927645742 (no local há pouca rede, por isso, quem quiser saber se o casal lá está, tem de ir insistindo)

 

Fotos: Elisabete Rodrigues|Sul Informação

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