Crónicas do Sudoeste Peninsular (XXXII): Turismo Total, turistificação, ludificação, gentrificação, liquidificação

A região do Algarve vive hoje um ciclo de “turismo total”, uma verdadeira bolha turística em crescimento. O turismo é […]

A região do Algarve vive hoje um ciclo de “turismo total”, uma verdadeira bolha turística em crescimento. O turismo é um fator fundamental de desenvolvimento regional, mas é, também, um fator muito sensível às variações do ciclo geopolítico e geoeconómico.

Está, por isso, criada uma excelente oportunidade para discutir as várias hipóteses de diversificação da sua base económica regional. Sim, porque é na fase alta de um ciclo que se deve discutir os problemas da fase baixa do ciclo. E a fase baixa do ciclo não deixará de aparecer, mais tarde ou mais cedo.

Os efeitos externos, positivos e negativos, de uma bolha turística são conhecidos, e eles são tanto mais excessivos quanto mais estreita for a base económica da região.

Todavia, se estivermos avisados e tomarmos as medidas cautelares apropriadas, é perfeitamente possível antecipar, moderar e regular esses efeitos externos.

Vejamos alguns riscos envolvidos na formação desta bolha turística e depois as hipóteses de diversificação da base económica regional.

I. Os riscos envolvidos na formação de uma “bolha turística”

Não vale a pena ignorar, os factos recentes demonstram à evidência que há um regresso em força dos riscos geopolíticos e geoeconómicos. Toda a fronteira europeia está hoje envolvida num “anel de fogo” que pode explodir em qualquer momento.

O turismo é a atividade económica que reage mais rapidamente a estas variações de risco político e económico, isto é, trata-se de uma actividade especialmente volátil e muito sensível à variação do risco. Neste sentido, é preciso estarmos avisados em relação aos seguintes riscos:

– Há um risco alto de “turistificação” se o fluxo turístico estreitar ainda mais a base económica já existente (monoindústria) e se a “economia do Algarve” for progressivamente substituída pelos “eventos do Algarve”,

– Há um risco alto de turistificação se a omnipresença da monoindústria turística condicionar o desenvolvimento de outros setores, impedindo, por esse facto, a reestruturação da base económica regional,

– Há um risco alto de turistificação se a região atrair “investimentos predadores” em busca de retorno rápido e, ao mesmo tempo, provocar a desvalorização brusca de outros ativos regionais,

– Há um risco alto de “liquidificação” do mercado de trabalho regional e da vida quotidiana local, se tudo, ou quase tudo, girar à volta do turismo e se o emprego estruturado for substituído pelo trabalho desestruturado e pela mobilidade total deste fator de produção, num mercado regional cada vez mais indiferenciado e desregulado; por outro lado, esta “liquidificação” do mercado de trabalho desvaloriza os quadros técnicos de outras áreas formados na região e que não encontrarão aqui ocupação profissional,

– Há um risco alto de gentrificação dos “centros e baixas” de vilas e cidades, se houver um excesso de ludificação e patrimonialização dessas zonas urbanas que conduza a uma pressão imobiliária inusitada sobre os respetivos moradores, em particular, os mais idosos e desprotegidos,

– Há um risco alto de turistificação se, por via de uma ludificação excessiva, o Algarve se transformar numa região cosmopolita e numa plataforma low cost de eventos turísticos e culturais, em regime acelerado de substituição por via de pequenos investimentos de proveniência muito variada,

– Há um risco elevado de turistificação se se verificar um consumo excessivo de recursos públicos orçamentais por virtude desta atividade e, em especial, um consumo excessivo de recursos hídricos que podem pôr em causa o abastecimento de água às populações (as guerras climáticas e da água), no preciso momento em que se fazem sentir os efeitos mais perniciosos das alterações climáticas,

– Há um risco geopolítico elevado, no plano da segurança interna e coletiva, em especial na gestão da linha de fronteira proveniente do Magrebe Ocidental, o que pode implicar a tomada de medidas restritivas e mesmo a suspensão da liberdade de circulação de pessoas por períodos determinados.

 

II. A diversificação da base económica regional

Não é tarefa fácil falar de diversificação da base económica regional quando estamos em contra-corrente ou em situação de contra-ciclo, como é o caso da presente conjuntura.

Porém, é bom recordar que a diversificação da base económica regional se justifica pela extrema variabilidade dos fluxos de turismo ao risco geopolítico e geoeconómico e que esta diversificação regional está posta em causa porque, justamente, a atividade turística é aquela que remunera mais rapidamente as pequenas poupanças e os pequenos investimentos realizados.

Nesta conjuntura, a cadeia de valor está do lado do turismo, mas, porque todos sabemos como acabam as bolhas turísticas, é nossa obrigação fazer alguns alertas à navegação.

Esta diversificação da base económica regional pode ser interna ao setor do turismo, por diferenciação das suas atividades, e/ou externa ao setor, por complementaridade com outras atividades.

1. A diversificação interna ao setor do turismo
O ciclo turístico diz-nos que a primeira fase é a massificação da oferta para atender ao afluxo repentino de novos turistas (entre 3 a 5 anos) e que uma resposta interna reativa ao aumento da procura é realizada por “ajustamento da oferta” e protagonizada por investidores locais e regionais;

A segunda fase é a “diferenciação da oferta” anterior, uma vez consolidados alguns fluxos e conquistados novos segmentos de turistas e investidores dos países de origem desses fluxos (entre 3 a 5 anos);

A terceira fase é, se tudo correr bem nas fases anteriores, a “diversificação intra-setorial e a segmentação seletiva” para atender a nichos e clientelas específicos de mercado (entre 5 a 10 anos).

Quer dizer, um ciclo turístico bem sucedido precisa de uma conjuntura favorável próxima de 20 anos para fazer surtir todos os seus efeitos externos positivos e, esperamos nós, moderar e regular os efeitos negativos.

Quanto mais longo é o ciclo turístico, maior é a probabilidade de se autorregular, e tanto mais quanto for capaz de gerar muitos efeitos de rede e uma forte capilaridade em direção a outros setores de atividade.

2. A diversificação externa ao setor do turismo
No que diz respeito à diversificação externa ao setor do turismo, mas intimamente correlacionado com ele, estão duas ideias-força que importaria capitalizar: a primeira, a cooperação inter-regional entre o Algarve e o Alentejo, o “Grande Sul”, para desenvolver as inúmeras complementaridades funcionais entre as duas regiões, e a segunda, intimamente associada à primeira, a “Euro-região AAA” ou o “Grande Corredor triplo A”, que ligará a área metropolitana de Lisboa à área metropolitana de Sevilha.

São dois cenários geoeconómicos muito próximos, sobre os quais vale a pena trabalhar no próximo futuro e que rasgam horizontes muito amplos para as três regiões envolvidas (Alentejo. Algarve, Andaluzia) pela mutação que provoca no reposicionamento dos investimentos mais relevantes.

Por exemplo, a área do setor agroalimentar tem aqui uma posição fundamental que pode servir para relançar a região do “Grande Sul” português.

Em segundo lugar, a diversificação externa estará, seguramente, muito correlacionada com as atividades marítimas e marinhas.

Bastará, para tanto, lembrar, por exemplo, os dois centros de investigação da Universidade do Algarve nesta área para alimentar fundadamente esta esperança positiva.

O Atlântico Sul virado para os PALOP e a América Latina será, seguramente, uma grande oportunidade, mas, também, o alargamento da nossa plataforma marítima será uma ocasião para aumentar os recursos públicos na direção da economia do mar.

Em terceiro lugar, a diversificação externa terá obrigatoriamente de passar pelos novos empreendimentos da economia digital. Uma região cosmopolita só pode ser uma região inteligente, o turismo e o mar serão sempre atividades muitos exigentes nessa matéria.

No “Grande Sul” português, as Universidades de Évora e do Algarve deveriam criar um “ecossistema digital inteligente” como infraestrutura fundamental para a “smartificação” da Euro-região AAA), um grande projeto de investigação e desenvolvimento peninsular para o lançamento de uma linha de start-ups na economia do mar, do turismo e da cultura.

Nota Final
É por demais manifesto que as duas regiões do “Grande Sul” não se sabem pensar a si próprias, muito menos conjuntamente.

No seu caso, não é o sonho que comanda a vida. Há longo tempo prisioneiras de clientelas e corporações oportunísticas, as duas regiões, que são metade do território nacional, não têm sequer 1 milhão de habitantes e elegem apenas 16 deputados.

Se formos capazes de prolongar o ciclo turístico durante 20 anos, moderando e regulando os seus afloramentos mais críticos, existem condições favoráveis para que o “Grande Sul” e não apenas o Algarve cresçam demograficamente, sejam exemplares do ponto de vista da reabilitação urbana, mas, também, da economia verde e circular (redução da sua pegada ecológica), sejam a sede de várias plataformas tecnológicas nas áreas da economia do mar, do turismo e da cultura e ofereçam a oportunidade de uma “2ª ruralidade”, com mais cidade no campo e mais campo na cidade, funcionalmente encaixada no universo urbano e onde se desenvolva um grande programa agroalimentar e agroenergético baseado na agroecologia e na agricultura biológica.

Voltarei ao assunto, vem aí o próximo período de programação 2020-2027 e nós não temos nenhuma ideia-força para o “Grande Sul” que altere a relação de forças hoje prevalecente.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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