O Algarve arrancado pela raiz

Chegado o mês de Agosto, o centro do mundo lusitano transfere-se, de armas e bagagens, para o Algarve, transformando a […]

As estufas de plástico avançam na paisagem algarvia – vista a partir de Santo Estêvão (Tavira)

Chegado o mês de Agosto, o centro do mundo lusitano transfere-se, de armas e bagagens, para o Algarve, transformando a região na capital da silly season.

É aqui que tudo o que “interessa” acontece.

As putativas vedetas plastificadas que se pavoneiam pela praia (sorrindo pouco para não esticar a perna involuntariamente), os VIP que vão em busca de borlas para os sunset, bares e festas do momento, arrastando cardumes de aspirantes a socialite, que, como rémoras, estabelecem uma relação de comensalismo mediático, colhendo as migalhas de fama deixadas para trás pela gente bonita, tudo regado a gin, que a moda é para cumprir.

Likes e hashtags, a quanto obrigam….

Entretanto, longe da vista e também do coração, o Algarve que ainda é genuíno mas não tem os pezinhos na areia e que, como tal, não cabe no romântico desvario colectivo do endless summer, vai sofrendo uma metamorfose profunda e silenciosa.

Está em curso, desde há algum tempo a esta parte, uma destruição sistemática dos sistemas tradicionais de produção, especificamente pomares de sequeiro – mais ou menos estruturados – e conjuntos de árvores autóctones como a alfarrobeira e a oliveira, os ex-libris da aliança fitossociológica Oleo-Ceratonion, cujo alcance se diz estabelecer os limites do Mediterrâneo. O motivo mais frequente desta alteração é a implementação de culturas com recurso a estufas, mas também, mais recentemente, a instalação de pomares de regadio, incluindo de árvores exóticas de fruto.

Este fenómeno é promotor de uma profunda descaracterização da paisagem tradicional algarvia, concretamente da sua identificação com o cunho mediterrânico. Se pensarmos que ocorre com já assinalável expressão, por exemplo, no concelho de Tavira, a alardeada capital da dieta mediterrânica, maior e mais profunda reflexão deve provocar.

De nada serve andar a propagandear uma dieta mediterrânica enquanto se permite a morte e substituição da paisagem e dos sistemas produtivos e culturais que a abastecem. Ou será que o figo brasileiro, a amêndoa norte-americana e a azeitona argentina compõem um prato verdadeiramente mediterrânico?

Não que haja “vilões” nesta história. O sector primário deve ser uma das apostas da região e há espaço para culturas diversificadas no contexto da agricultura regional. E a posse e manutenção das terras acarreta custos, que obrigam à geração de receitas para lhes fazer face e, obviamente, gerar mais-valias económicas através da produção, que trabalhar para aquecer dificilmente compensa – acabe-se com a teoria do pobrete, mas alegrete.

No entanto, fazê-lo à custa da implementação de sistemas baseados em elevados inputs de energia e recursos (água, fertilizantes, pesticidas, fitossanitários, etc.) em detrimento de sistemas ancestrais, altamente adaptados às condições de clima, solo e disponibilidade de água não parece grande ideia, ainda para mais num quadro de Alterações Climáticas que nos coloca perante crescentes desafios ao nível da disponibilidade desses mesmos recursos.

Compete à Administração Pública a ponderação e gestão dos interesses particulares com o interesse público que representam os valores ecológicos, sócio-culturais e económicos inscritos na paisagem mediterrânica. Protegendo esses mesmos valores, mas trabalhando simultaneamente com os promotores para encontrar soluções ecológica, social e economicamente viáveis para materialização das suas intenções.

O que só se alcança com uma afirmação e acção política efectiva, a nível local, regional e nacional, contrariando o ambiente de omissão e demissão decisória. Para lamber mecânica e acriticamente listas de requisitos não precisamos de tanta entidade, técnicos e, ironicamente, decisores.

Ou ratificámos a Convenção Europeia da Paisagem e definimos a Política Nacional de Arquitectura e Paisagem apenas como mais uns ocos bibelots legais, para que os nossos pares europeus não nos achem tão bárbaros?

Os processos de construção da paisagem num determinado momento são, de forma inescapável, a expressão do seu tempo. São também processos contínuos, pelo que a paisagem não é, nem pode ou deve ser, uma fotografia estática e imutável. O que está aqui em causa não é portanto a transformação, mas sim a forma e implicações dessa transformação e, principalmente, o que revela de nós, enquanto principal agente modelador da paisagem.

No fundo, uma reflexão existencial.

Que espécie de região nega a sua identidade? Que futuro nos está reservado, desgarrados da nossa essência? Que caminho trilhamos, ao virar costas a milhares de anos de aprendizagem e de inscrição desse conhecimento na construção de paisagem? Que dieta é esta que matamos à fome? Que tempo é este em que o tempo não vale nada?

As respostas estão em aberto.

Se vamos arrancar o Algarve pela raiz, ao menos que o façamos de forma consciente.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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