Despachito

Estava o Luis Fonsi todo contente, confiante de que o seu Despacito era o êxito do Verão em Portugal, quando […]

Estava o Luis Fonsi todo contente, confiante de que o seu Despacito era o êxito do Verão em Portugal, quando surge concorrência, e logo por parte do Estado!

Não falo do autarca algarvio que prossegue uma carreira paralela no ramo musical (ao que parece, com assinalável êxito), mas antes do bombástico “Despachito”, da autoria conjunta do Primeiro-Ministro e da preclara Ministra da Administração Interna, que promete ser de arromba! E não é para menos, já que uma declaração de estado de calamidade a título preventivo é coisa para a qual nem dois Daddy Yankee chegavam, quanto mais um!

Felizmente para o músico porto-riquenho, a prevenção à portuguesa vem quando o País já ardeu praticamente de uma ponta à outra.

De qualquer forma, nos 155 concelhos abrangidos por esta declaração – entre os quais os 16 algarvios – do passado dia 18 de Agosto, são adoptadas medidas destinadas a permitir uma maior e mais ágil disponibilização de recursos para acções de prevenção e combate a incêndios, bem como de protecção civil, como o aumento do grau de prontidão das Forças Armadas, Guarda Nacional Republicana e equipas de Sapadores Florestais, ou a proibição total de fogos-de-artifício – mesmo os promovidos pelas autarquias, como por aqui já aconteceu em pleno período crítico.

Mas nestas coisas importa sempre juntar alguma dose de folclore (meu querido mês de Agosto) e aquela dose boa de distanciamento da realidade que tem pautado a actuação do Ministério da Administração Interna, pelo que às medidas sensatas se juntaram outras, do domínio circense, como a proibição da circulação e permanência no interior dos espaços florestais, a proibição total da utilização em todos os espaços rurais de máquinas de combustão, o aumento de prontidão de operadores de redes fixas e móveis de comunicação e de energia, bem como o aumento da mobilização dos bombeiros voluntários (não fosse alguém achar que têm andado folgados…).

No conjunto, o Estado tenta então regular uma matéria relativamente à qual não tem estratégia ou conhecimento, num território que globalmente ignora, em propriedades alheias, socorrendo-se de recursos que na verdade não tem, contando com outros recursos que não tem forma de gerir directamente ou garantir afectação e querendo banir a presença de quem vive e intervém quotidianamente no território e constitui a primeira linha de detecção e defesa, sem sequer ter capacidade para fiscalizar e fazer vigorar tal proibição.

No papel, cabe tudo e tudo fica bem, mesmo que o rei vá nu por entre as chamas, procurando sinal na rede no SIRESP…

Esta vertiginosa viagem no fio da navalha entre o optimismo néscio, o desconhecimento/alheamento dos factos e a simples piada de mau gosto é o rosto da abordagem estatal à gestão florestal, cabalmente demonstrada com a aprovação a martelo da pomposa “reforma florestal”, vã trapalhada que conta com o alto patrocínio do Presidente da República e dos seus afectuosos e imediatistas ímpetos popularuchos.

Contas feitas, fica tudo na mão do acaso.

Quando assim é, os resultados são os que se conhecem, transformando leis, decretos e despachos em meros rabiscos em papéis, constantemente ultrapassados pela realidade. E ilusionismo, para entreter os apreciadores.

Cobrir este assunto com farsas ou mantos de mutismo, é criar uma cortina de fumo ainda mais densa do que aquela que, nestes últimos dias matinalmente nos foi trazida pelos ventos, dando-nos literalmente um cheirinho do inferno que o Centro do País vive, e que tão bem conhecemos. E sob ela, nada nunca mudará.

As sensibilidades variarão de pessoa para pessoa, mas se 64 cadáveres e um País calcinado não nos conseguem trazer os pés à terra, e as prioridades continuam a ser aparências e popularidades, começa a ser difícil ter qualquer esperança num futuro digno.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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