Delicadeza

Estava eu, num belo domingo de sol, deleitando-me com o clássico Les Feuilles Mortes, na voz de Yves Montand, quando […]

Estava eu, num belo domingo de sol, deleitando-me com o clássico Les Feuilles Mortes, na voz de Yves Montand, quando fui “atropelado” pela passagem de um grupo de motocicletas, que despejou na tarde quente e modorrenta, até então tranquila, um ruído ensurdecedor e muita fumaça.

O contraste agudo entre a sutileza da interpretação do grande chansonnier e a rudeza daquela barulheira sem sentido provocou em mim uma “iluminação-relâmpago”, que reafirmou minha convicção de que estamos — todos nós que ainda acreditamos ser parte dessa entidade abstrata chamada “Humanidade” — bem perto de perder, de uma vez por todas, algo que, aliás, jamais conseguimos adquirir plenamente e que esteve presente em fugazes momentos da História: a delicadeza.

Considero essa qualidade uma espécie de ápice civilizacional, a um só tempo causa e efeito de um estado muito específico e desejável de convivência, no qual cada pessoa exibe o que tem de melhor sem deixar, com isso, de respeitar os outros.

A delicadeza que tenho em mente é muito mais do que o imprescindível “lubrificante” dos relacionamentos humanos ou do que uma prova clara de elegância. Ela não tem nada que ver com a adesão acrítica a dogmas “politicamente corretos” — um estado patológico do qual padecem alguns pensadores que se intitulam a si mesmos “progressistas” — nem com a tolerância suicida (e covarde) que tudo permite aos intolerantes. Não. A delicadeza que tenho em mente é, sobretudo, a quintessência que se destila da conjunção de três ingredientes cada vez mais raros: a sabedoria, a satisfação consigo mesmo e o autocontrole.

Fica fácil, por isso, compreender que não podem ser delicadas as pessoas que se entrechocam pelos aeroportos e pelos centros comerciais nesta época de férias, sem saber muito bem o que fazem ali; ou os arrojados “equilibristas” que não respeitam nenhum limite na sanha de conseguir mais um selfie; ou os “atletas” da autoestima que tanto desejam ser “si-mesmos” que se acabam esquecendo de que o mundo ficaria melhor se não insistissem nesse intento; ou os coléricos que trocam desaforos pela mídias sociais, por melhores que sejam suas causas; ou os adultos que despejam seu recalque nas crianças, invejosos da infância que não tiveram; ou os adolescentes, cada vez mais prepotentes, que não respeitam os idosos, ainda que estes sejam seus avós; ou os indivíduos que se dizem ateus, ironizando a religião alheia, mas que se agarram a qualquer guru tão logo lhes advém um infortúnio (que é inevitável nesta vida); esta lista quase não tem fim.

Se afirmo que corremos o risco de eliminar a delicadeza para sempre, é por estar inteiramente convencido de que tudo — ou quase tudo — em nosso mundo conspira para esse triste desígnio.

É, de fato, solo infértil para ela um mundo com tão poucos bons artistas e com tantos maus críticos; um mundo com tanta arte panfletária ou secamente formalista, da qual a chama do espírito já há muito se afastou; um mundo com tanta discussão apedeuta e sensacionalista sobre o multiculturalismo, sobre as questões de gênero e de raça e sobre outros temas caros aos “pós-estruturalistas”, cuja importância ninguém nega, mas que viraram, hoje, fetiches midiáticos; um mundo em que a batalha burocrática pela obtenção de verbas já substituiu, em muitas universidades, a busca sincera pelo conhecimento que ilumina; um mundo com tanto sectarismo, com tanta gritaria política, com tantas ideologias totalitárias travestidas de democráticas; um mundo onde crianças (que poderiam ficar em casa) vão para a escola antes mesmo de falar e lá aprendem a comer doces, a ouvir música ruim e a menosprezar sua nascente interioridade em prol de uma “socialização” forçada e precoce; um mundo com tantas “mesas-redondas” futebolísticas a solaparem a consideração de temas mais elevados; esta lista, à semelhança da anterior, também é quase interminável.

Na minha ânsia em querer salvar, de algum modo, essa qualidade que reputo valiosíssima, pensei até em bater-me pela instauração de uma nova Utopia. Nela, todos seriam obrigados — como sói ocorrer nas utopias… — a fruir, diariamente, à guisa de “terapêutica comportamental”, nem que fosse com os olhos abertos com pinças (como em “Laranja Mecânica”), exemplos inequívocos de delicadeza: um poema de Mário Quintana; uma pintura de Fragonard; a humildade de Dersu Uzala, o antológico protagonista do filme homônimo de Akira Kurosawa; qualquer peça de Mozart, de Debussy ou de Satie; o sorriso de Audrey Hepburn; o belíssimo diálogo entre o oficial francês De Boeldieu e seu homólogo alemão von Rauffenstein, no filme La Grande Illusion, de Jean Renoir; esta lista, em contraste com as outras duas, não é, infelizmente, muito longa.

Recobrei, porém, a tempo a sanidade e desisti do meu projeto revolucionário, concluindo que se outros, no decorrer dos últimos três séculos, também tivessem desistido dos seus, muitas atrocidades teriam sido evitadas.

A verdade é que forçar as pessoas a serem o que não são (nem poderão ser) — ao contrário do que sonham os “idealistas” — nunca dá mesmo certo, além de ser um gesto profundamente indelicado.

 

Autor: Cláudio Guimarães dos Santos
(que escreve em Português do Brasil)

 

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Pequena Nota Biográfica
Cláudio Guimarães dos Santos

Poeta, ensaísta e pai do Gabriel, Cláudio Guimarães dos Santos nasceu em São Paulo, Brasil, em 1960.

É mestre em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da USP e doutor em Linguística pela Université de Toulouse-Le Mirail.

Em 2014, publicou a coletânea de poemas Definições Fundamentais, com prefácio do Embaixador Rubens Ricupero, lançada em Montevidéu e São Paulo.

Em maio deste ano (2017), publicou, pela Editora Bohodón (Madrid), a coletânea de poemas integralmente bilíngue Coleção de Epifanias/Colección de Epifanías, com introdução crítica de Fernando Cabrita e prefácios de Pedro Ferré e de Manuel Moya, que também foi o tradutor da obra para o espanhol.

Como artista plástico participou, em São Paulo, de exposições no Museu de Arte Contemporânea, no Museu de Arte Moderna, na Pinacoteca do Estado e no Museu da Imagem e do Som.

Como cineasta, escreveu e dirigiu O Atentador, longa-metragem em Super-8. Como médico, atuou na área do diagnóstico e do tratamento de disfunções cognitivas relacionadas à memória e à linguagem.

Realizou investigações nos campos da neuropsicologia, da psicoterapia, da semiótica e da filosofia da mente, sempre com um enfoque transdisciplinar.

No Brasil, trabalhou no Instituto de Estudos Avançados/USP, na Faculdade de Medicina/USP e na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP. No exterior, atuou como pesquisador e conferencista na França, nos Estados Unidos, no Canadá, no México e no Uruguai.

É diplomata de carreira desde 2010 e já serviu em Frankfurt e em Montevidéu. Trabalha, atualmente, no Consulado-Geral em Faro, onde é Vice-Cônsul e Chefe do Setor Cultural e de Cooperação Educacional.
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