Crónicas do Sudoeste Peninsular (XXVIII): A revolução tecnológica e digital, uma oportunidade para o interior

Os incêndios das últimas semanas na região Centro chamaram, mais uma vez, a nossa atenção para a dura realidade do […]

Os incêndios das últimas semanas na região Centro chamaram, mais uma vez, a nossa atenção para a dura realidade do nosso “grande país do interior”.

São bem conhecidos os nossos pecados capitais em matéria de coesão do território: zonas rurais desfavorecidas e desertificadas, zonas insulares e zonas de montanha, áreas metropolitanas congestionadas, zonas urbanas degradadas, zonas industriais em declínio, zonas fronteiriças, etc.

Trinta anos depois da adesão de Portugal às Comunidades Europeias, a política de coesão territorial é, cada vez mais imaginativa, mas, não obstante, os problemas estruturais de longa data permanecem e, sobretudo, não resistem à descontinuação das políticas públicas sobre um longo período. Portugal é um bom exemplo deste stop and go.

De súbito, e após alguns anos de austeridade, eis que a esperança renasce mais uma vez. Desta vez, a revolução tecnológica e digital é de tal modo exponencial que podemos estar à beira de decretar a abolição do espaço e da distância.

A mobilidade, a velocidade, a universalidade, a ubiquidade, seriam uma medida dessa aceleração tecnológica. Desta vez, em pleno século XXI, é a conjugação das novas tecnologias (NBIC) e das redes digitais distribuídas (RDD) que nos coloca na linha da inteligência coletiva e da equidade territorial.

Com efeito, num país tão pequeno e tão bem servido de vias de transporte, e com o acesso generalizado das gerações mais novas às tecnologias digitais, o problema da “valorização do interior” tem necessariamente de ser pensado e equacionado em outros parâmetros.

Estaremos nós equivocados ao pensar problemas novos com conceitos velhos?

 

1. A constelação das NBIC
A constelação tecnológica formada pelas nanotecnologias (N), as biotecnologias (B), as indústrias informáticas (I) e as ciências cognitivas (C) terá um impacto devastador sobre as ciências da vida e a saúde humana, as indústrias da alimentação e o mundo natural.

O aumento dos interfaces eletrónicos e digitais com a comunicação humana e as neurociências irá transportar-nos até mundos desconhecidos, ao universo da robótica e do pós-humanismo.

As NBIC serão, também, uma parte essencial do ciberespaço, onde todos teremos acesso a todos e todos teremos acesso a tudo. Com as NIBC seremos “cidadãos aumentados”, pós-humanos, senhores do universo e teremos, digamos, a inteligência das multidões esclarecidas.

Com as NBIC seremos o homo connexus, conectados e-qualquer coisa, tele-qualquer coisa ou on-qualquer coisa. Em qualquer lugar, independentemente do “não-lugar” onde estejamos.

Perante tal exuberância, resta dizer que a crise das ciências humanas e sociais, hoje, é o contravalor deste aparente sucesso das NBIC. Tal como aconteceu no início do século XIX, com a 1ª revolução industrial e a emergência das ciências humanas e sociais, as tecnologias NBIC vão obrigar-nos, muito rapidamente, a reinventar a constelação das ciências humanas e sociais da primeira metade do século XXI sob pena de mergulharmos numa longa noite interminável feita de medo, violência e obscurantismo.

E quanto a estes novos “territórios NBIC”, onde estarão e como serão?

De um lado, teremos “seres aumentados”, plenos de microchips, viajando constantemente no ciberespaço, de outro, territórios rodeados de sensores por todos os lados, permanentemente vigiados e vigiando-nos a todo o tempo. Nesta vertigem, é muito provável que a velocidade elimine a distância, mas, também, uma parte importante dos “territórios invisíveis”.

É certo, a banda larga e as autoestradas da informação podem contribuir para mais equidade territorial. As iniciativas municipais relativas aos espaços de coworking e aos fablab também podem contribuir para mais equidade territorial, assim como os incentivos públicos da política de coesão que estimulam os centros de investigação para a criação de start-up locais.

É verdade, tudo isto, a seu modo, contribui para “a morte da distância”, mas, também, para a melancolia e o definhamento dos territórios do interior pela simples razão de que não atingem um urbanismo crítico que lhes permita contrariar os movimentos em direção ao litoral.

Creio, porém, que, num país tão pequeno, os territórios do litoral e do interior serão, antes, diferentes funcionalidades do mesmo território, de acordo com uma outra tipologia de territórios cada vez mais encaixados: territórios-profissionais, territórios-residenciais, territórios de transição, territórios recreativos, territórios terapêuticos e de recolhimento, territórios de reserva, territórios-santuário, etc.

 

2. As Redes Digitais Distribuídas (RDD)

As redes digitais distribuídas serão a promessa da grande ilusão isotrópica. Ao contrário das redes centralizadas que reproduzem o poder hierárquico e vertical, as redes digitais distribuídas são “relações sem poder”, laterais e colaborativas, sem centro ordenador.

As RDD fazem parte da chamada “internet primordial” ou internet dos cidadãos, através da qual se praticará a economia dos bens comuns colaborativos, uma economia sem intermediários em que os produtores são também consumidores e vice-versa.

As empresas start-ups que criarem plataformas tecnológicas e respetivas aplicações serão o agente principal destas redes digitais distribuídas e aqui a imaginação não tem limites.

Os espaços de coworking, os fablab, as incubadoras, os centros de investigação, serão os locais privilegiados para fazer nascer estas RDD mas a grande maioria encontra-se numa fase rudimentar e artesanal a necessitar de uma nova geração de investimento público e/ou privado.

A “velha economia material” reportava as economias de aglomeração e as externalidades positivas como os instrumentos fundamentais para criar um ecossistema favorável ao crescimento empresarial e ao desenvolvimento económico regional. As infraestruturas e os equipamentos materiais faziam parte desse ecossistema favorável, quase sempre com investimento público nos chamados bens não-transacionáveis.

Hoje, porém, à “nova economia imaterial” não bastam as comunidades online criadas de geração espontânea em espaços de coworking ou fablab municipais. Esta é a versão fashion do problema que temos entre mãos e que as políticas públicas de coesão territorial alimentam amiúde, com incentivos de ocasião, sem sucesso visível ou aparente.

Também não bastam as start-up geradas em incubadoras e aceleradoras, quais corredores solitários em busca de uma pista segura que lhes garanta um mínimo de sustentabilidade.

De facto, há uma diferença abissal entre o conforto de uma rede digital gerida por uma comunidade online e o desconforto de um problema real gerido por uma comunidade offline, já para não falar da qualidade do ator-rede que administra a rede digital distribuída.

Mais importante, ainda, importa dizer que a RDD necessita não apenas de um ecossistema digital favorável como, também, de uma compreensão alargada da sua comunidade de destino. Nestes termos, a RDD não será distribuída, será apenas mais um vendedor de ilusões sem impacto real sobre os problemas existentes.

 

3. Comunidades online, agricultura 4.0 e ocupação humana do interior

É inevitável, o deslumbramento tecnológico é de tal ordem que vamos ter de transitar pelo “interior virtual” antes de perceber que é muito complexo e até, por vezes, doloroso todo o processo de conversão das comunidades online em comunidades offline.

Quer dizer, vamos ter de fazer um processo de aprendizagem para, finalmente compreender qual é a melhor combinação de “virtualidade e realidade”.

E quanto à agricultura e a valorização do interior, eis alguns exemplos retirados das tecnologias de precisão da empresa agrícola 4.0:

– Gestão remota da rega.
– A monitorização das culturas a partir de imagens aéreas obtidas com drones.
– Câmaras de vigilância nos estábulos e vacarias.
– Robôs de ordenha e alimentação.
– Chips nos animais para acompanhamento do seu ciclo de vida.
– Robôs para realizar os trabalhos na vinha.
– Veículos autónomos como maquinas agrícolas e tratores.
– A sensorização da floresta (os olhos e os ouvidos das árvores).
– As câmaras térmicas (os olhos noturnos dos bombeiros).
– Imagens por drone das zonas com maior acumulação de matos.
– Robôs para fazer o ataque a incêndios.
– Recolha e tratamento da informação bruta: farming data e cloud computing.
-Modelos computacionais para a elaboração de cenários de intervenção.
– Criação de aplicações em smartphones para uso de agricultores e bombeiros.
– Inteligência artificial (machine learning) para diversas simulações.

Estes exemplos mostram que na “próxima incarnação” o mundo rural estará irreconhecível, pois a “internet das coisas” estará presente desde a agricultura de precisão até à silvicultura preventiva.

Mas a agricultura de precisão 4.0 será apenas um dos vetores, porventura o mais exuberante, presentes no mundo rural. Estaremos, doravante, imersos no paradigma da mobilidade e das economias de rede e visitação.

Além disso, num país tão pequeno como Portugal, servido por boas infraestruturas de transporte e comunicação, o problema principal não é o “repovoamento e o stock populacional” de zonas de baixa densidade, mas, antes, a organização virtuosa da mobilidade e do fluxo de população, isto é, a montagem imaginativa e eficiente de uma economia de rede e visitação no território, concebido como território-rede colaborativo baseado em serviços itinerantes e polivalentes que a tecnologia das redes sociais pode muito bem imaginar e montar.

 

Nota Final
Por tudo o que fica dito, já não fazem qualquer sentido algumas das categorias intelectuais e ideias dominantes que nos regeram nas últimas décadas, por exemplo: o estigma social ligado ao campo, o sacrifício da extensão rural no altar do mercantilismo químico-mecânico, o produtivismo monocultural e superespecializado, a dicotomia urbano-rural, o progresso identificado com o êxodo e a urbanização, a desqualificação do capital social no rural profundo e o academicismo sobranceiro e conservador das instituições de ensino superior, todas elas fonte de inúmeros mal-entendidos.

Creio que, no próximo futuro, naquilo que eu designo como a “2ª ruralidade”, a novidade mais importante será a emergência da sociedade colaborativa e a economia da partilha assentes numa grande variedade de redes e plataformas tecnológicas e sociais.

Na 2ª ruralidade, “os neorurais vindouros” terão aí um papel fundamental e tornarão o campo quase irreconhecível tal como o conhecemos hoje.

A agricultura acompanhada pela comunidade (AAC) e a gestão comunitária e agrupada de aldeias e vilas serão uma realidade, a economia da partilha e as boas práticas da economia circular serão, igualmente, uma realidade face aos recursos ociosos, sub-empregados e esquecidos, finalmente, a patrimonialização dos recursos arqueológicos e históricos e a sua moderada turistificação serão, também, uma realidade.

Não será o melhor dos mundos, mas será seguramente um mundo melhor.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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