Terras sem Sombra acaba este sábado e (ainda) é tempo de recordar uma das suas jornadas mais emotivas

Agora que está a chegar ao fim a edição de 2017 do Festival Terras sem Sombra, com a entrega, este […]

Agora que está a chegar ao fim a edição de 2017 do Festival Terras sem Sombra, com a entrega, este sábado, 1 de Julho, em Sines, do seu Prémio Internacional, o Sul Informação recorda aqui aquela que foi uma das jornadas mais emotivas deste certame que percorre o Baixo Alentejo.

Tratou-se do concerto da cantaora Esperanza Fernández, acompanhada pelo grande guitarrista Miguel Ángel Cortés, espetáculo que até conseguiu juntar, no mesmo palco, em Serpa, a 6 de Maio, o flamenco e o cante alentejano, duas expressões musicais ibéricas que já são Património Imaterial da Humanidade.

Mas o programa desse fim de semana do Festival Terras sem Sombra, além da música, incluiu ainda, como é costume, na tarde de sábado, uma incursão pelo património histórico e arquitetónico daquela cidade alentejana, bem como, no domingo de manhã, um passeio a pé desde Vila Verde de Ficalho até à Serra de Ficalho, no âmbito de uma ação de salvaguarda da biodiversidade que teve por centro o olival tradicional.

No sábado, durante a tarde, o destaque foi para a visita ao centro histórico de Serpa, que começou junto à Câmara Municipal, e teve por fulcro o palácio dos Marqueses de Ficalho. A visita foi guiada pelo historiador de arte José António Falcão e pelo investigador António Martins Quaresma, que estão ambos a acabar um livro sobre as igrejas e o património religioso de Serpa, escrito mano a mano.

O percurso a pé passou pelo antigo açougue, pela Torre do Relógio, pela Igreja de Santa Maria, a matriz, que a tradição diz ter sido erguida sobre a antiga mesquita. Tal como na matriz de Loulé, a atual torre da igreja em Serpa teria sido o minarete.

Ali ao lado, fica uma casa com porta de arco ogival, o que levou José António Falcão a lembrar que «os judeus de Serpa foram muito perseguidos pela Inquisição de Évora». Maria Manuel Oliveira salientou: «não sabemos onde era a judiaria, nem a sinagoga».

O grupo seguiu então para o castelo, onde se entra passando por baixo de um enorme bloco da antiga torre de menagem medieval, depositado em equilíbrio que parece instável. É um testemunho da explosão que destruiu a praça de armas portuguesa em 1707, quando o Duque de Ossuna, à frente das tropas espanholas, fez uma incursão pela margem esquerda do Guadiana, para tomar Moura e Serpa.

Mas o prato forte do passeio cultural foi a visita ao palácio dos Marqueses de Ficalho. Este notável edifício, ainda hoje residência particular da família Ficalho e classificado como Monumento Nacional, abriu ao público as portas, excecionalmente, nesta ocasião. E foram muitas as pessoas – mais de 200 – que quiseram visitar, pela primeira vez, o edifício.

Tendo como guias José António Falcão e D. Matilde, uma das proprietárias do palácio, os participantes tiveram de ser divididos numa dúzia de grupos. «Há mais de 40 anos que queria visitar o palácio, mas nunca tinha conseguido», desabafava um serpense, que esperava a ansiosamente a sua vez de entrar.

O palácio data dos finais do século XVI, tendo sido mandado construir por D. Francisco de Mello, alcaide-mor de Serpa. José António Falcão sublinhou a «dimensão e intenção arquitetónica» do edifício, «que supera tudo o resto. No Alentejo, de Évora para baixo, não há nada com esta dimensão. É uma exceção no panorama da arquitetura do sul».

A obra seria completada pelos seus filhos, D. Pedro, governador do Rio de Janeiro, e D. Martim Afonso de Mello, bispo da Guarda. Trata-se de um exemplar erudito da arquitetura civil maneirista, fiel aos princípios da tratadística italiana de Quinhentos, e que chegou quase inalterado à atualidade.

A fachada principal, orientada para um terreiro, apresenta uma estrutura de grande sobriedade, ao gosto «chão». Interiormente, o palácio é dividido em salas amplas, intercaladas por galerias, cuja estrutura austera se conjuga com a «gravitas» exterior. Pouco depois de terminada a parte residencial, foi construído sobre o pano da muralha um aqueduto, destinado a abastecê-la. Viveu neste palácio o célebre botânico e escritor Conde de Ficalho (1837-1903), cuja memória perdura inalterada.

Os jardins do palácio, hoje semi-abandonados, serão em breve recuperados, num protocolo com a Câmara Municipal de Serpa.

À noite, houve concerto, desta vez não numa igreja, como é norma do Terras sem Sombra, mas ao ar livre, na praça principal da cidade, a curta distância da antiga Porta de Sevilha, outrora rasgada nas muralhas desta cidade, o que é um sinal bem expressivo da abrangência, em clave ibérica, com que o Terras sem Sombra encara as relações entre a música religiosa e a sociedade dos nossos dias.

Com a grande cantaora Esperanza Fernández, o flamenco na sua dimensão pura chegou ao Alentejo. Esperanza foi acompanhada pelo grande guitarrista granadino Miguel Ángel Cortés, e, na percussão, por outras referências da música andaluza: Jorge Pérez «El Cubano», Dani Bonilla e Miguel Junior, filho da cantaora do bairro sevilhano de Triana.

Revisitando a herança espiritual de Sevilha a partir do cante jondo, Esperanza evocou a religiosidade do povo cigano, a que pertence, e aproximou-a com encanto da poesia de José Saramago, que cantou.

Emotivo foi também o momento final do concerto, quando, repetindo a experiência de Sevilha (na apresentação do festival), subiu ao palco o Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento, para juntar as suas vozes masculinas à de Esperanza, quase num “ato de geminação” entre o cante e o flamenco.

Ainda mal refeitos das emoções de um grande concerto, que encheu a praça da República, no domingo de manhã foi a vez da ação de biodiversidade, que teve a singularidade da Serra de Ficalho como tema.

O ponto de encontro foi marcado para junto da igreja de Vila Nova de Ficalho, que hoje pertence a Serpa, mas que, recordou José António Falcão, já foi sede de concelho. A vila, acrescentou o historiador de arte, fica «ancorada numa rota de ligação entre Andaluzia e o Alentejo». Durante a Guerra Civil de Espanha, «houve por aqui muitas cumplicidades que salvaram vidas».

A pequena mas muito interessante igreja, cujos beirais exteriores estão cobertos de ninhos de andorinhas, é um edifício «neoclássico perfeito, de planta centralizada». Há histórias curiosas à volta deste templo, como a da Marquesa de Ficalho que, na sagração da igreja, ofereceu a todas as raparigas de Ficalho um vestido novo.

«Esta é das terras mais andaluzas de Portugal, com os seus falares raianos e casamentos mistos. É quase uma eurocidade», brincou José António Falcão.

Foi depois tempo de partir, a pé, em direção à Serra de Ficalho. Atingindo 518 metros de altura, é a elevação mais relevante da vasta mancha de terrenos metamórficos que se estende desde a fronteira até Montemor-o-Novo, constituindo um relevo de rochas carbonatadas no seio de uma matriz xistosa. A existência de matagais densos e fechados permite o abrigo de muitas espécies de mamíferos, nomeadamente o lince ibérico.

Mas o grande destaque da visita foi para o olival tradicional que cobre grande parte das encostas da serra, com muitas variedades locais (Cordovil de Serpa, Galega, Verdeal Alentejana, Carrasquenha, Bico de Corvo, Cornicabra, Gama e Maçanilha), e ainda para o mármore, que também por ali aparece em grande quantidade. Os guias foram Raquel Ventura, do ICNF, Luís Coelho, da Direção Regional de Agricultura e um apaixonado pelo olival, e ainda o geólogo João Amado.

Com um passeio que terminou numa antiga pedreira de mármore, uma ferida aberta na paisagem, houve tempo para ouvir contar histórias de antigas guerras entre portugueses e espanhóis, do encontro entre as imagens dos santos de ambos os lados, Nossa Senhora das Pazes e Santo Isidro, numa capela a meio caminho, de bandoleiros que infestavam a serra, ou até de D. Baldomero Espartero, que, no século XIX, no fim da 1ª República Espanhola, fugiu para a zona, com 50 mil homens a cavalo. Apesar do susto inicial que isso causou na população portuguesa, acabou por ser bem recebido e até por ali deixou a sua espada.

Para os convidados, este fim de semana intenso terminou com um almoço oferecido pelo Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento, nesta vila do concelho de Serpa, tendo como anfitrião António Silva. Isabel Estevens, vereadora da Cultura, que acompanhou todo o programa, fez questão de salientar que o Festival Terras sem Sombra, «é o resultado de quem muito sonha e muito acredita».

O Festival Terras sem Sombra tem como pano de fundo o Baixo Alentejo, realizando-se, em itinerância, nos concelhos de Almodôvar, Sines, Santiago do Cacém, Ferreira do Alentejo, Odemira, Serpa, Castro Verde e Beja, num périplo de património, música e biodiversidade que este ano começou a 11 de Fevereiro e termina este sábado, 1 de Julho.

E termina em Sines, com a entrega do Prémio Internacional Terras sem Sombra, numa cerimónia que terá lugar no auditório da Administração do Porto de Sines, às 17h30, sob a presidência de D. Amalio de Marichalar, Conde de Ripalda.

O Festival Terras sem Sombra é organizado pela Pedra Angular – Associação dos Amigos do Património da Diocese de Beja e as suas atividades são sempre de acesso livre.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues|Sul Informação
(com edição de Ana Madeira)

 

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