Crónicas do Sudoeste Peninsular (XXIV): a reforma do poder autárquico (3)

Os sistemas de administração do território deixaram de ser uma variável exógena do processo mais geral de modernização das instituições […]

Os sistemas de administração do território deixaram de ser uma variável exógena do processo mais geral de modernização das instituições políticas. No século XXI, a “tecnologia política” do Estado-administração está sujeita a uma pressão e obsolescência constantes, se pensarmos, por exemplo, nos movimentos de globalização, de integração supranacional e de descentralização infranacional, no conjunto, aquilo que hoje a literatura designa como processos de “governação multi-escalares ou multiníveis”.

Isto também quer dizer que, em definitivo, a reforma do poder autárquico não é independente da reforma do Estado-administração. Antes de me referir ao poder regional e autárquico, deixo aqui alguns princípios gerais que deverão informar a reforma do Estado-administração.

I – Princípios gerais da reforma do Estado-administração

1) Não há reforma sem uma profunda recomposição das missões e estrutura do governo central, cabendo-lhe desempenhar, essencialmente, funções prospetivas, normativas, regulatórias, inspetivas e contratuais e, dessa forma, acautelar, também, o excessivo pendor corporativo das estruturas ministeriais.

2) Não há reforma sem a formação de um “governo policontextual”, isto é, um governo que considere as leis-quadro, o sistema de planeamento, os orçamentos de base-zero e os contratos-programa como instrumentos privilegiados de enquadramento da administração pública e, em especial, de uma arquitetura policêntrica para a administração do território que, neste governo de contexto, se tornaria a principal “coluna executiva” do país.

3) Não há reforma se não investirmos mais na “delimitação do interesse público”, na discriminação positiva dos mais desfavorecidos, na organização dos interesses difusos e na economicidade das formas organizativas desse mesmo interesse público, isto é, em modos inovadores e eficientes de administrar bens comuns e bens públicos.

4) Não há reforma se insistirmos na confusão analítica entre “cliente e cidadão”, aceitando com ligeireza que os métodos e as técnicas de gestão se possam sobrepor e substituir às deliberações políticas do espaço público administrativo e territorial; hoje em dia, e cada vez mais, a perceção do cidadão não confunde o funcionamento da administração com a justeza e a justiça das políticas públicas locais e regionais.

5) Não há reforma, por mais inventiva que seja, independente do processo de crescimento económico; se “descontinuarmos” a política de coesão territorial, não estamos só a bloquear o futuro, estamos, também, a destruir as conquistas do passado e, no limite, uma questão de regionalização do território pode transformar-se num problema mais sério de regionalismo político.

6) Não há reforma se desistirmos de acreditar a “concertação territorial e certificar as organizações de interesses”, associativas ou outras; trata-se de dar conteúdo genuíno à democracia participativa e evitar a manipulação mediática e partidária que só a pressão da procura e um verdadeiro locus de responsabilidade política podem acautelar.

7) Não há reforma sem um grande esforço de modernização político-administrativa ao nível intermédio de administração regional; esta nova racionalidade territorial é a trave-mestra para reformar as administrações, regional e local, e relocalizar as suas missões e funções, ao mesmo tempo que impede que a administração periférica do Estado seja facilmente capturada pela implantação territorial dos aparelhos partidários e respetivas clientelas e sindicatos de voto.

8) Não há reforma sem um equilíbrio saudável entre jurisdições fixas no território, autarquias e seus derivados, e jurisdições funcionais correspondentes à “geometria variável dos interesses”; é preciso criar instâncias de concertação acreditadas entre os dois níveis de jurisdição.

9) Não há reforma sem um equilíbrio harmonioso entre as várias formas e dispositivos de administração pública, desde a administração mais tradicional até às plataformas virtuais, com passagem pela administração de consulta e as várias modalidades de administração “sob contrato”, sempre com o objetivo de promover o acesso universal mas diferenciado e, assim, evitar a infoexclusão de alguns segmentos de população da sociedade sénior.

10) Não há reforma sem uma consideração ponderada da auto-estima dos agentes político-administrativos, ou seja, é um imperativo ético e deontológico rever o estatuto e a condição de interesse e serviço público, de delimitação e realização do bem comum, de estabilidade de carreira, do sistema de estímulos, sanções e remuneração correspondente.

Este decálogo da reforma do Estado-administração transporta-nos para o novo espaço público da sociedade participativa, contratual e digital onde os conceitos da “ordem velha” político-administrativa de cariz hierárquico, autoritário e unilateral darão lugar, pouco a pouco, aos conceitos da “ordem nova”, mais descentralizada, comunicativa, policêntrica e policontextual de uma sociedade aberta.

Nesta nova arquitectura societal residirão, seguramente, as áreas de maior inovação do futuro Estado-administração cujas externalidades positivas aproveitarão, em primeira instância, aos municípios e às regiões.

 

II. Os princípios de uma reforma do poder regional e local

No plano, digamos, político-doutrinário estou convencido de que a reforma do poder regional, no quadro da reforma do Estado, antecede e enquadra a reforma do poder local.

Isto não significa que não se possa empreender uma reforma do poder local, mas, nesta circunstância, mais legalista e regulamentar, com muito equilibrismo político à mistura e, quase seguramente, pouco efetiva.

Basta olhar para o Algarve, uma região de 430 mil habitantes, e para os seus 16 municípios, para perceber imediatamente que a reforma do poder regional deve anteceder e enquadrar a reforma do poder local.

A minha posição de princípio, a este propósito, é simples: a única estratégia de desenvolvimento regional e local em relação à qual não há razões para ter dúvidas, na conjuntura do atual período de programação (2015-2020), é a que afirma que é possível “fazer mais e melhor com menos recursos”.

Por outro lado, é certo, em qualquer estratégia é preciso distinguir entre a política regional, isto é, o sistema de estímulos positivos e negativos às regiões e municípios e a autonomia política dos “territórios desejados”, que é necessária para levar a bom termo essa política regional, em condições de eficácia, eficiência, equidade e efetividade (4E).

Eis o meu modesto contributo para o debate urgente sobre este compromisso, isto é, o compromisso político e financeiro entre os modelos de política regional (de cima para baixo) e o modelo de regionalização política (de baixo para cima) que são mais adequados a esta fase da nossa vida coletiva.

1) Estou convencido de que é muito compensador fazer o debate político-ideológico a propósito deste compromisso político, pelo menos em duas versões: o debate mais ideológico entre unitaristas, regionalistas e municipalistas acerca das conceções do Estado e da administração pública, e o debate mais utilitarista e pragmático acerca do experimentalismo de uma política de regionalização e dos seus vários momentos; os efeitos político-pedagógicos e práticos destes debates seriam de uma utilidade indiscutível;

2) Estou convencido da imprescindibilidade de uma lei-quadro da descentralização político-administrativa para enquadrar todos os setores que contam para o processo de regionalização: falamos dos distritos, dos municípios e das suas associações, das comunidades intermunicipais, das áreas metropolitanas, dos agrupamentos europeus de cooperação territorial, das comunidades de trabalho transfronteiriças, das redes territoriais e urbanas de todo o tipo, que congestionarão o território se não houver uma lei-quadro que esclareça o gradualismo do processo e as transações (atribuições, competências e meios) entre níveis de governo e administração;

3) Estou convencido de que, na sociedade da informação e do conhecimento em que vivemos, sem “auto-estima regional” nunca haverá imagem de marca e mobilização territorial suficientes; é imperioso que as regiões possuam uma imagem positiva e assertiva de si próprias, que a sua energia positiva seja mobilizada na direção certa, que possam usufruir da sua liberdade plena para se pensarem a si próprias, correndo todos os riscos e consequências que essa assertividade pode acarretar e implicar; neste contexto, o lema “fazer mais e melhor com menos recursos” pode ser um estímulo forte e uma motivação acrescidos para uma estratégia de desenvolvimento regional inovadora, em especial, no domínio da sua “política de relações exteriores”;

4) Estou convencido de que é imperiosa a necessidade de subir na cadeia de valor da programação e do planeamento regionais, a partir de uma ideia global e consistente de desenvolvimento regional, que não seja um mero somatório de candidaturas sem qualquer ligação entre si no espaço e no tempo; em particular, precisamos, urgentemente, de rever a dicotomia entre coesão e competitividade que tantos equívocos já ocasionou, pois as regiões, na sua diversidade, estão obrigadas a converter essa diversidade em vantagem;

5) Estou convencido de que  quanto mais o país se internacionaliza, mais urgente se torna a necessidade de criar regiões fortes; face à penúria de meios financeiros, as regiões precisam de liberdade para que todo o seu capital humano e material seja adequadamente valorizado por intermédio de um modelo de governo mais autonómico, competitivo e relacional; não há que ter medo das regiões assim constituídas, as leis da república e a política regional multiníveis continuarão a ser os reguladores da “nova sociedade”;

6) Estou convencido de que é imperioso desfazer o equívoco que confunde centralização com centralidade e racionalização com racionalidade; criámos um “país pendular” que balança há trinta anos entre os níveis central e local, sem querer perceber que os territórios regionais podem ser excelentes centros de racionalidade e centralidade de políticas públicas; precisamos de demonstrar a nós próprios que a regionalização pode corrigir este velho e anacrónico país pendular;

7) Estou convencido de que é imprescindível reconhecer, para não ser surpreendido, que o êxito do processo de regionalização é, antes de mais, uma questão essencial de cultura política no seu sentido mais nobre, que mergulha fundo na macrocefalia ancestral do país, sempre renovada por novas formulações imaginativas (institutos, agências, observatórios, comissões, etc.), por um lado, e na “municipalização” do território sobre a qual assenta toda a orgânica político-eleitoral e, bem assim, as estruturas político-partidárias; se o processo de regionalização for “politicamente correto” teremos, porventura, dado um contributo decisivo para uma mudança substantiva e substancial da cultura política em Portugal, sem ignorar que ele pode ser, igualmente, um processo impertinente e conflituoso, ao sabor das políticas conjunturais e das maiorias de ocasião;

8) Estou convencido de que as CCDR são uma excelente base de partida para a política de regionalização e a regionalização política, pois constituem um “interface” de referência para todos os serviços regionais do Estado e dispõem de uma legitimidade funcional e operativa para a condução da política regional; podem ensaiar-se diversas vias, mais curtas ou mais longas, para converter as CCDR em órgãos de governo e administração regionais;

9) Estou convencido de que será difícil consolidar uma política interna de regionalização se não forem criados “benefícios de contexto” pelo sistema de política regional no quadro da coesão territorial da União Europeia; falamos do funcionamento de um “multi-level system” que engloba a “política regional europeia”, a “política regional nacional” e a “política regional regional” e as suas respetivas estruturas de governo e administração e, bem assim, os seus distintos e complementares modos de financiamento;

10) Estou convencido de que é imperioso reequilibrar a cooperação transfronteiriça no quadro peninsular e eliminar os equívocos que resultam da assimetria institucional existente e, bem assim, o arsenal de “soft policy” regional disponível que não é aproveitado em profundidade e onde já se inclui a cooperação interregional descentralizada, a formação de euro-regiões e de euro-cidades e a utilização mais conveniente da figura dos Agrupamentos Europeus de Cooperação Territorial.

 

Nota Final

Este argumentário favorável à reforma do poder regional e à política de regionalização não ignora e não escapa à influência de alguns conflitos emergentes, aquilo que aqui designamos de “os novos conflitos da política regional e da política de regionalização” em resultado do aumento do número de atores e da sua “procura regional”, motivada pelo lançamento de novos policy-instruments por parte da União Europeia.

Destes dois conjuntos, instrumentos e atores, resultam novas interações mas, também, novos conflitos de jurisdição e interesse. Uma dessas interações e/ou conflitos diz respeito à concorrência entre redes de municípios, comunidades intermunicipais, estados-região, cidades-região, euro-cidades, regiões-cidade, euro-regiões, redes de cidades, agrupamentos europeus de cooperação territorial, etc.

Finalmente, estamos, algures, entre a regionalização administrativo e o regionalismo político. Conter as identidades e as multiterritorialidades mais radicais será o maior desafio da política regional, quer dizer, aceitar a profusão de identidades e motivações territoriais diferenciadas e pôr ordem política nos distintos conflitos jurisdicionais, por via, justamente, da constituição de uma entidade regional reguladora e politicamente legitimada.

Não é tarefa fácil, mas será aqui que se fará sentir, com mais acuidade, o valor acrescentado da regionalização político-administrativa.

Chegados aqui, já temos o enquadramento necessário e suficiente para apresentar aquilo que aqui consideramos como os traços emergentes do paradigma do poder local e do município do século XXI. Voltaremos ao assunto.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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