Crónicas do Sudoeste Peninsular (XXII): A reforma do poder autárquico

Agora que se aproximam as Eleições Autárquicas vou dedicar as próximas Crónicas do Sudoeste Peninsular à reflexão em redor do […]

Agora que se aproximam as Eleições Autárquicas vou dedicar as próximas Crónicas do Sudoeste Peninsular à reflexão em redor do tema da reforma do poder autárquico, tanto mais quanto ela faz parte da atual agenda política.

No futuro próximo, iremos, muito provavelmente, revisitar o conceito de “poder autárquico”, no sentido de um poder mais aberto e criativo, mais lateral e colaborativo, de um “par inter pares”, agindo, simultaneamente, em comunidades reais, em plataformas digitais, redes sociais e comunidades online.

Esta abertura do poder autárquico aumentará o espaço de liberdade e o campo das possibilidades e soluções do município do século XXI, em direção à formação e composição de novos territórios em rede de geometria muito variável.

Teremos, assim, um município “sem fronteiras” e mais cosmopolita, mais interativo com os seus concidadãos, com mais economia verde e economia azul nas suas preocupações, mais criativo e cultural, porventura menos fiscalista e mais contratualista no plano financeiro, enfim, um municipalismo cada vez mais intermunicipal em direção ao federalismo municipal de 2º grau.

Em consequência dessa abertura, a sua organização interna e a sua gestão sofrerão uma “pequena revolução”, não apenas na estrutura orgânico-funcional e na relação entre o back office e o front office, mas, sobretudo, na sua cultura de relação, isto é, na estratégia de informação, comunicação e interação face às redes colaborativas de que fará parte e que, doravante, constituirão o seu novo ambiente de acolhimento preferencial.

A nossa revisitação do poder autárquico não se limitará, porém, à nova cultura da gestão municipal, mais aberta e colaborativa, ela estende-se, também, à reforma do poder territorial no seu conjunto, aos diferentes níveis político-administrativos, no quadro da reforma do Estado-administração em curso, sem a qual a gestão municipal perde clareza, fulgor e profundidade. Nesta primeira crónica começo com uma reflexão sobre o “sistema de poder” do poder local.

 

O sistema de poder do poder autárquico

Como já sabemos, o plano de observação e o ângulo de observação mudam a natureza da coisa observada. Refiro-me às perspetivas micro, meso e macro de governação multi-níveis do poder autárquico e da sua especial multi-escalaridade.

Como sabemos, também, num Estado de estrutura unitária como o nosso, o nível regional é um nível de conformação e coordenação e não um nível de autonomia ou self-government.

Acresce que, além disso, 25 anos de programação plurianual de fundos europeus foi tempo suficiente para criar “um sistema de poder com várias zonas de conforto”, pretensos direitos adquiridos e uma inércia conveniente em matéria de gestão de expectativas.

Criou-se, assim, uma espécie de ritual que o país todo aguarda com muita expectativa de 6 em 6 ou de 7 em 7 anos, de tal modo que se pode falar de um sistema de poder composto por acessos e códigos, portas e corredores, que, com o tempo, consagrou três elementos analíticos principais: as instituições políticas e a burocracia (a polity), as diversas políticas públicas (a policy) e uma atividade de lobbying (a politics).

De resto, esta sucessão de ciclos de 7 anos não apenas consagrou as restrições e condicionalidades impostas pelos regulamentos de acesso aos fundos europeus, mas, também, mudou substancialmente a natureza da administração deste sistema de poder, no sentido em que são os programas que reinventam ciclicamente os territórios, de cima para baixo, e não os territórios que formatam os programas e as medidas, de baixo para cima.

Quanto ao essencial, que é a sua organização territorial, o país parece “um ser invertebrado” a quem falta uma coluna vertebral.

Por um lado, o excesso de centralismo, por outro, o excesso de localismo. Um país bipolar, portanto.

Na linguagem da nomenclatura das unidades territoriais estatísticas (NUTS), o país está assente nos níveis NUTS I (central) e NUTS IV (local).

Ora, ao contrário, o país deveria estar assente nos pilares intermédios, os níveis NUTS II (regiões funcionais coincidentes com as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional) e NUTS III (agrupamentos e/ou comunidades de municípios), de modo a criar densidade, massa muscular, sistema nervoso e coluna vertebral.

Qual é, então, o problema? O problema é que estes níveis intermédios não são placas giratórias, não distribuem poder específico próprio. O “sistema de poder” do poder local está organizado em redor de três subsistemas de distribuição de poder: duas circunscrições eleitorais (municipal e distrital), três níveis de administração pública (Central, Regional, e Local ) e três níveis de organização político-partidária (concelhio, distrital e nacional).

Os partidos políticos, os operadores privilegiados do sistema de poder, tentam otimizar a sua implantação, o seu sistema de poder, a sua distribuição de lugares, neste sistema a três dimensões.

Em 2017, 43 anos depois do 25 de Abril, em muitos municípios portugueses, o poder local confunde-se com o poder autárquico, ao mesmo tempo que a “sociedade política local” parece ter sido capturada pela omnipresença asfixiante da Câmara Municipal. Quer dizer, em muitos municípios estamos perante um verdadeiro Estado-Local controlado pela autarquia. Nestas condições, o “sistema de poder” do poder autárquico pode ser caracterizado da seguinte forma:

1) Numa estrutura de governo e administração unitária, como a nossa, o sistema de poder local tende para um “nível de compatibilização e conformação intermunicipal”;

2) O “sistema desconcentrado” funciona no “modo vertical e hierárquico”, de cima para baixo; a “única legitimidade original” é a autárquica, a “administração regional não pode inventar”;

3) O sistema cria muitos “simulacros de participação” para poder funcionar e criar habituação e rotina; as relações pessoais e clientelares estão lá para facilitar;

4) O sistema funciona numa “lógica utilitarista declarada” de saldo de fluxos, independentemente da sua avaliação em termos de eficácia, eficiência e efectividade;

5) O sistema não tem “multi-escalaridade suficiente” devido à baixa autonomia dos níveis intermédios;

6) O sistema padece de um “excesso de institucionalização”, ora centralista ora localista, que lhe agrava o vício burocrático e as ineficiências internas;

7) O sistema produz muita “retórica discursiva sobre inovação”, quase por dever de ofício, mas os territórios de geometria fixa como os municípios são “geralmente conservadores”; ao contrário, os territórios de geometria variável são, por vocação, mais inovadores;

8) O sistema cria a “opacidade necessária e conveniente à sua reprodução”, por via das suas relações clientelares e pessoais de tal maneira que a corporação municipal não veja afectada a sua putativa reputação; e faz isso bem, de uma maneira geral.

Chegados aqui, a grande incógnita dos próximos anos é saber se assistiremos ao enquistamento deste poder autárquico corporativo, ou antes, à sua “libertação” por via de uma maior diversidade social e pela criação de novos formatos socio-organizacionais, nos quais o poder autárquico é um “par inter pares” em estreita articulação com os outros poderes, empresarial, universitário, cultural, mediático, associativo, etc.

Está em causa a construção de comunidades em rede, de uma economia local colaborativa e de novas plataformas tecnológicas que sustentem essas comunidades socialmente construídas.

Este “sistema de poder” tão laboriosamente construído está, porém, em risco de definhamento. O país tem parcelas crescentes do seu território em estado de necessidade que mais parecem verdadeiros “territórios em reclusão”.

Refiro-me a municípios inteiros sem atividade económica digna desse nome, com uma população totalmente envelhecida e, sobretudo, sem um horizonte de esperança no futuro próximo ou longínquo.

Estamos no quinto exercício de programação dos fundos estruturais europeus e ninguém parece interrogar-se sobre as razões pelas quais as assimetrias regionais e territoriais se agravaram em quase trinta anos de investimento local, rural e regional.

O risco é que haja, ciclicamente, por razões de défice ou de dívida pública, ajustamentos severos e períodos de austeridade que nos provoquem uma desvalorização dos ativos do território e, concomitantemente, a sua passagem para as mãos de terceiros, estranhos aos territórios em questão.

Este será o nosso principal problema, agora e no futuro, ou seja, a destruição de tecido produtivo local sempre que haja um período de ajustamento. Com efeito, não haverá política de desenvolvimento local, rural ou regional que resista ao stop-and-go da política de ajustamento macroeconómico.

Estou, sobretudo, a pensar nesse mar imenso que é o “grande país do interior”, nesses “concelhos-lar” do rural remoto, que crescem todos os dias à míngua de esperança e gente empreendedora.

Não há sistema de poder autárquico que resista a esta transferência de recursos para fora das suas fronteiras e, no entanto, o poder local não pode ser responsabilizado pela dívida pública acumulada.

Necessitamos, portanto, de um grande esforço de ordenamento, programação, planeamento e realização territoriais e, para tal, de mais e melhor inteligência coletiva territorial. É justamente aqui que falta fazer “a revolução do poder local”.

Voltaremos ao assunto.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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