Crónicas do Sudoeste Peninsular (XVIII): Interioríssimo, os futuros territórios-rede do interior

O país tem parcelas crescentes do seu território em estado de necessidade que mais parecem verdadeiros “territórios em reclusão”. Refiro-me […]

O país tem parcelas crescentes do seu território em estado de necessidade que mais parecem verdadeiros “territórios em reclusão”.

Refiro-me a municípios inteiros sem atividade económica digna desse nome, com uma população totalmente envelhecida e, sobretudo, sem um horizonte de esperança no futuro próximo ou longínquo.

Estamos no quinto exercício de programação dos fundos estruturais europeus e ninguém parece interrogar-se sobre as razões pelas quais as assimetrias regionais e territoriais se agravaram em quase trinta anos de investimento local, rural e regional.

De cada vez que ocorre “um período de ajustamento”, lá voltamos nós, por razões de défice ou de dívida pública, a uma desvalorização dos ativos do território e a uma forte depreciação dos investimentos entretanto realizados.

Este será o nosso principal problema, agora e no futuro, ou seja, a destruição de tecido produtivo sempre que ocorra um período de ajustamento.

Com efeito, não haverá política de desenvolvimento territorial, com as suas habituais descontinuidades, que resista ao stop-and-go da política de ajustamento macroeconómico. Estou, sobretudo, a pensar nesse mar imenso que é o “grande país do interior”, nesses concelhos-lar do rural remoto que crescem todos os dias à míngua de esperança e gente empreendedora.

Para trás, ficaram as promessas da 1ª ruralidade, trata-se, agora, de preparar a inteligência territorial da 2ª ruralidade em direção ao que designo como os “territórios-rede da 2ª ruralidade”.

Apresento a seguir uma série de exemplos, que são outras tantas configurações sociais de territórios-rede, uma espécie de “arquitetura de interiores” de uma região, que podem e devem servir para formar, a pouco e pouco, uma grelha de leitura crítica relativamente a uma estratégia necessária de desenvolvimento territorial.

Necessitamos, para isso, de um grande esforço de ordenamento, programação, planeamento e realização territoriais, agora que se fala tanto de Comunidades Intermunicipais (CIM), e de pôr em prática uma filosofia geral dos contratos de desenvolvimento para territórios-rede em construção, sendo certo que o desenvolvimento territorial estará sempre condicionado pela qualidade da política regional que for prosseguida e, ainda mais, pela qualidade superior da política macroeconómica prosseguida no quadro europeu.

Dada a baixa densidade dos territórios do interior, estamos obrigados a criar economias de aglomeração e redes de visitação, através do que eu designo como a criação de uma “inteligência coletiva territorial”.

Os territórios-rede e o ator-rede são uma metodologia muito interessante para esse efeito (Covas, 2014). Apresento de seguida uma lista indicativa de potenciais territórios-rede que podem ser abordados com esse propósito.

 

Os territórios-rede do interior

1) Uma área urbana ou uma rede de cidades, em articulação com clubes de produtores e de consumidores, uma associação de desenvolvimento local e uma escola superior agrária, por exemplo, propõem-se desenhar um sistema alimentar local (SAL), a partir da agricultura periurbana e através de uma rede de circuitos curtos, tendo em vista organizar o comércio local de produtos alimentares de proximidade.

Ao mesmo tempo, a parceria aproveita para requalificar o sistema de espaços e corredores verdes, utilizando, por exemplo, as hortas sociais, as linhas de água e os bosquetes multifuncionais, tendo em vista articular as áreas urbanas, as áreas rurais e as áreas naturais;

2) Um parque natural que comporta uma ou várias unidades de paisagem, conjuntamente com o clube de produtores do parque ou a associação ambientalista do parque, mais o conjunto das aldeias que integram o parque, a associação de desenvolvimento local da região e a escola politécnica ou universidade mais próxima propõem-se modernizar o sistema produtivo local (SPL) do parque, criando, para o efeito, uma agroecologia específica, uma indicação geográfica de proveniência (IGP) e uma nova estratégia de visitação do parque, por via de um marketing territorial mais ousado e imaginativo; passamos, assim, do “sistema de produtos” locais para os “produtos do sistema” produtivo local;

3) Um empreendimento turístico, uma comunidade piscatória, uma área de paisagem protegida, uma câmara municipal, uma associação de desenvolvimento local e uma escola superior propõem-se requalificar vários empreendimentos turísticos e uma praia adjacente e criar um nicho de mercado e um novo espaço público de qualidade para o turismo acessível, terapêutico e recreativo (turismo de saúde e bem-estar), com base, por exemplo, numa pequena aglomeração de atividades terapêuticas, criativas e culturais criadas para o efeito;

4) Um grupo de aldeias ribeirinhas, na área de influência de um lago, de uma albufeira, de uma barragem ou bacia hidrográfica, os operadores turísticos, as associações e/ou clubes de produtores agroflorestais, as administrações de recursos hídricos, uma escola superior propõem-se lançar uma estratégia criativa e integrada de agro-turismo e turismo rural que inclui a participação e a experienciação dos visitantes nas práticas agro-rurais tradicionais;

5) Um grupo de aldeias com vocação especializada num determinado setor ou produto, as aldeias vinhateiras do Alto Douro, por exemplo, património mundial da Humanidade, associa-se com os empreendimentos turísticos, as associações ou clubes de produtores, uma escola superior, as associações culturais mais representativas, tendo em vista desenhar uma estratégia conjunta de visitação e valorização do património material e imaterial dessa sub-região;

6) Um grupo de cooperativas agrícolas ou associações de agricultores, uma empresa de distribuição alimentar ou rede de supermercados, a associação de municípios da mesma área, uma escola superior agrária ou universidade, associam-se tendo em vista desenhar uma estratégia conjunta de modernização agroecológica e comercial para uma sub-região que foi objeto de grandes investimentos públicos e que precisa urgentemente de ser relançada (Alqueva e Cova da Beira, por exemplo);

7) Uma ou mais Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), as associações ou clubes de produtores florestais, as reservas cinegéticas, as áreas de paisagem protegida e as zonas de proteção especial, as empresas agroflorestais, uma escola superior, as comunidades humanas envolvidas associam-se para constituir um sistema agro-florestal (SAF) ou agrossilvopastoril, tendo em vista criar uma estratégia de intervenção integrada que vai desde a prevenção e recuperação de áreas ardidas à construção dos sistemas agro-silvo-pastoris com o seu cabaz completo de produtos da floresta;

8) Um centro de investigação na área da biodiversidade, da ecologia funcional e reabilitação de ecossistemas, um parque ou reserva natural, uma associação agro-florestal, empresas de turismo em espaço rural, empresas na área do termalismo, propõem-se criar um programa de investigação-ação, tendo em vista a preservação da biodiversidade e dos endemismos locais, a melhoria da oferta de serviços ecossistémicos relevantes e a valorização comercial destes ativos biodiversos, por via do lançamento de serviços turísticos, culturais e científicos;

9) Um agrupamento de associações de desenvolvimento local, em associação com uma universidade ou escola politécnica, uma escola profissional agrícola, um parque ou reserva natural e um conjunto de aldeias serranas, os operadores de turismo de natureza e de aldeia, propõem-se lançar um programa de desenvolvimento comunitário de aldeias serranas;

10) Um grupo empresarial da área do termalismo e das águas minerais, uma área de paisagem protegida, uma associação ambientalista ou de desenvolvimento local, uma escola superior politécnica, a cooperativa ou associação local de produtores, as aldeias e vilas da área de influência do projeto, propõem-se criar uma espécie de “santuário, amenidade ou ecossistema exemplar”, que seja um local de aprendizagem e visitação de boas práticas agroecológicas onde se pode observar e aprender: a diversidade de agriculturas como arte, técnica e estética da paisagem rural, a ecologia da paisagem e a reabilitação de habitats, a economia da conservação, do baixo carbono e da energia renovável, a arquitectura funcional associada à bioconstrução e à bioclimatização, etc.;

11) No campo da ação social, através da configuração de um projeto associativo, comunitário e/ou de voluntariado, de itinerância sociocomunitária, que junte, por exemplo, os sindicatos, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) e uma associação ou grupo de desempregados de longa duração que tenha sido constituído para o efeito no âmbito de cada centro de emprego;

12) No campo da provisão de serviços ambientais e ecossistémicos, através do desenho de uma convenção territorial para a proteção de recursos naturais e a provisão de serviços ecossistémicos, que são essenciais para o bem-estar e a qualidade de vida, que junte, por exemplo, uma administração de bacia hidrográfica, os produtores de regadio e a intermediação de uma associação de regantes, tendo em vista a melhoria da qualidade da água e a provisão de amenidades ribeirinhas;

13) No campo da ação coletiva e da provisão de serviços comuns, através do desenho de diversas fórmulas condominiais, seja um espaço rural para gerir um banco de terras, um espaço baldio, um espaço agroindustrial, um território cooperativo, um parque periurbano, tendo em vista, por exemplo, reduzir o risco moral implicado pela prática do free rider;

14) Mas poderíamos, também, referir outros territórios em estado crítico a necessitar de intervenção urgente e “rede social”: guetos urbanos, territórios pendulares, territórios de 2ª residência em meio rural, territórios turísticos padecendo de stress sazonal, zonas industriais decadentes, zonas florestais desordenadas, bacias hidrográficas descuidadas, etc.

 

Nota Final

Em todos e em cada caso, é, pois, necessário perguntar qual a melhor fórmula de “ação coletiva e inovação social” que pode e deve ser promovida e qual o ator-rede mais indicado para o efeito.

Desta “desordem tipológica”, queríamos retirar, apenas, um ensinamento de ordem geral, a saber, que, em todos os casos, a construção social de um território-rede faz apelo a três ordens de arranjos.

Em primeiro lugar, um “arranjo convencional”, isto é, os termos de uma convenção ou acordo entre parceiros que desejam empreender um território-rede para a construção do seu futuro, em segundo lugar, um “arranjo operacional” sobre processos e procedimentos necessários à constituição de um ator-rede, finalmente, um “arranjo produtivo local”, sob a forma de um sistema produtivo local (SPL) ou de um sistema alimentar local (SAL), que sejam um arranjo inovador e mobilizador para as comunidades locais .

Duas linhas de trabalho com muito interesse para estes territórios-rede (T-R) são os “grupos de missão residentes” que já usámos no Projeto Querença, e a abordagem denominada place branding embassador, baseada em “embaixadores do território”, que emprestam o seu prestígio e a sua notoriedade à parceria e à projeção da rede local.

De resto, as duas abordagens podem desenvolvidas em conjunto. As hipóteses estão todas em aberto, por que não tentar?

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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