Já que o povo ainda canta, o melhor é trazê-lo para o palco

A memória já não é o que era, dizem, mas, de microfone à frente, as Moças Nagragadas vão presenteando a […]

A memória já não é o que era, dizem, mas, de microfone à frente, as Moças Nagragadas vão presenteando a plateia com trava-línguas ditos a uma velocidade impressionante: adivinhas, canções tradicionais e lenga-lengas de que já poucos se lembram.

A apresentação do livro «O Povo que Ainda Canta», no Museu do Traje, em São Brás de Alportel, no sábado, dia 28 de Janeiro, foi tudo menos convencional, com o realizador Tiago Pereira, responsável pela série documental com o mesmo nome que a RTP exibiu em 2015, a passar o protagonismo a quem mantém bem viva na memória a tradição oral do Algarve.

O realizador e autor do livro que foi apresentado, um «diário de bordo do que foram as filmagens da série», em vez de falar sobre a obra, preferiu… demonstrá-la. Para isso, chamou ao palco as donas Almerinda e Leonor, elementos das Moças Nagragadas e protagonistas da série, para mostrar ao vivo a sua arte.

 

 

Apesar de um período inicial onde não escondem a timidez, as anciãs da aldeia de Paderne, no concelho de Albufeira, depressa libertam a língua e mostram porque razão Tiago Pereira tanto insistiu em gravá-las em vídeo, apesar de não ter sido fácil.

«Por volta de 2007, fui a Tavira e vi uma atuação das Moças Nagragadas. Nunca imaginei que alguém pudesse dizer trava-línguas àquela velocidade. Andei anos atrás do Ruivinho Brazão, até que consegui gravar», contou o realizador português.

Hoje, é notória a cumplicidade entre Tiago Pereira e os elementos do grupo presentes, incluindo o inicialmente relutante Ruivinho Brazão, estudioso da tradição oral popular que incentivou a criação das Moças Nagragadas.

Este é apenas um dos muitos exemplos das preciosidades que ainda se podem encontrar no Algarve.

 

 

E se algumas tradições são divulgadas por jovens, como é o caso de André Guerreiro, de Messines, outras estão guardadas na memória e nas mãos surpreendentemente ágeis da dona Rosária, de Loulé, que, apesar dos seus 99 anos (quando foi gravada por Tiago Pereira, entretanto já completou os cem), é «viciada em tocar a concertina e acorda a meio da noite para praticar».

 

 

Para o programador cultural Paulo Pires, esta capacidade de encontrar pessoas «que ainda sabem de cor» e de registar aquilo que as suas memórias guardam é a mais valia do trabalho que Tiago Pereira vem realizando há anos. «Vivemos numa época de amnésia, já que ninguém precisa de decorar nada. Está tudo registado. E o Tiago anda à procura destas pessoas que ainda sabem de cor», disse.

Tudo isto com uma «dimensão humana e afetiva», visto que é alguém «que não se limita a ir recolher sons e se vai embora».

Estas memórias, muitas vezes, estão “escondidas” na mente de pessoas mais idosas, mas há também jovens que fazem questão de as preservar. Um bom exemplo são as Moçoilas, grupo musical que pegou nas modas e canções tradicionais da Serra do Caldeirão e lhes deu outra visibilidade, que também tiveram a oportunidade de pisar o palco, no sábado. No domingo, estiveram a gravar diversos vídeos com Tiago Pereira.

 

 

No fundo, é esta rede de afetos, que já estava bem patente na série documental, que o livro aprofunda, não só através da escrita, mas também de imagens.

«Este é um livro muito íntimo, que representa cinco anos da vida da música portuguesa e da minha vida. É uma espécie de diário de bordo de coisas que eu ia gravando na altura e de fotografias que, às vezes, eu ou outros tirávamos durante as gravações. É a materialização daquele período num livro e é um livro de afetos, que relata momentos irrepetíveis, até porque muitas das pessoas que estão no livro já morreram», explicou Tiago Pereira, numa entrevista dada ao Sul Informação, dias antes da apresentação do livro em São Brás de Alportel.

Esta foi, de resto, a segunda sessão de apresentação do livro, logo a seguir a Lisboa. E a escolha do Algarve para iniciar o périplo pelo país deve-se ao facto de ter sido a região algarvia a inspirar o episódio piloto da série documental «O Povo que Ainda Canta».

 

Tiago pereira

«É super importante que esta segunda apresentação se faça no Algarve, pois inspirou o primeiro episódio d’ “O Povo que Ainda Canta”. Na altura, escolhi esta região, porque era o local onde não havia pontos no mapa da Música Portuguesa a Gostar dela Própria. Havia muito poucas gravações do Algarve e era importante resolver isso», explicou.

Agora, como se pode ver no site d’«A Música Portuguesa a Gostar dela Própria», que também foi apresentado na sessão de sábado, em São Brás, são já muitos os registos captados no Algarve, onde o realizador português regressa com regularidade. Com a nova plataforma, qualquer pessoa pode aceder aos mais de 2600 registos feitos pelo realizador ao longo dos seis anos que já leva o projeto.

No site, o visitante pode pesquisar «por instrumento, região, género, produção e realizador e ainda viajar pelo país, de distrito em distrito, incluindo as ilhas».

 

Veja as fotos da sessão de apresentação do livro em São Brás de Alportel:

Fotos: Hugo Rodrigues|Sul Informação

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