Crónicas do Sudoeste Peninsular (XIV): Regionalização administrativa e desenvolvimento local (3)

Terceira e última parte da palestra sobre “regionalização administrativa e desenvolvimento local”, que o professor António Covas proferiu, em Novembro, […]

Terceira e última parte da palestra sobre “regionalização administrativa e desenvolvimento local”, que o professor António Covas proferiu, em Novembro, na Biblioteca Pública de Faro, a convite da associação cívica CIVIS:

1. A oitava nota

Vocês falaram em municípios enquanto centros de poder. Se bem se recordam, houve uma tentativa de fazer uma reforma da Lei Eleitoral Autárquica, de transformar os executivos municipais em executivos monocolores, retirando o contraditório do Executivo Municipal e passando-o para a Assembleia Municipal, onde ele já existe, mas muito mitigado.

Obviamente, se o executivo virar monocolor, o parlamento municipal teria de ser, ele próprio, reforçado com outros poderes de audição e controlo.

É uma questão interessante, porque a democracia participativa não é indiferente a esta reforma eleitoral no plano da democracia representativa. Há mais democracia participativa se estivermos bloqueados no acesso ao município, porque, como eu a entendo, a democracia participativa é praticada de “dentro para fora e de fora para dentro”. Ao contrário, a democracia representativa é feita de “dentro para dentro”.

Na democracia participativa, nós estamos fora do município e pode haver vários canais de acesso. Até pode haver um conselho local ou vários conselhos locais por áreas e por setores e, depois, com as plataformas digitais, tudo isso pode funcionar.

Mas, outra coisa, é a nossa participação através dos órgãos constituídos do município. Estou a imaginar um mini-parlamento local à imagem e semelhança do parlamento nacional, com as comissões especializadas e audições onde os lobbies e as corporações fazem a queixa e a denúncia daquilo que se passa cá fora.

Se isso viesse a acontecer no parlamento municipal, esse canal privilegiado acabava por desvirtuar, de certa maneira, a democracia participativa, embora eu acredite que as duas vias sejam possíveis, ou seja, ter a democracia participativa a funcionar com plataformas tecnológicas e conselhos locais e, depois, ter um outro enquadramento institucional das autarquias, onde o poder dos lobbies possa fazer sentido e ser praticado mais diretamente do que hoje acontece.

Breve, se, tal como é ainda hoje, os executivos não forem monocolores, a pressão exerce-se diretamente na Câmara Municipal, se eles forem monocolores, a pressão exerce-se na Assembleia Municipal.

Este balanceamento entre democracia participativa e democracia representativa tem muito a ver com a prestação de contas e o controlo dos munícipes, e se, como referi anteriormente, as “quatro democracias” estiverem a funcionar, a pressão sobre o executivo é enorme e haverá, portanto, uma pluralidade de canais de comunicação entre a autarquia e a comunidade local.

2. A nona nota

No caso da União Europeia, as dúvidas ainda são maiores, pois a escala de uma união de freguesias não tem nada a ver com uma escala de 28 estados. Mas há um mérito que ninguém pode recusar à União Europeia, sabem qual é? É ser capaz de “transformar uma doença grave numa doença crónica”.

Não ponham, em primeira instância, o problema de saber se a União Europeia é bem ou mal sucedida. Ponham, antes, o problema de saber, se a União Europeia não existisse, onde é que nós estaríamos?

Por paradoxal que possa parecer, um dos méritos da União Europeia é a “inércia das instituições”. Perante a iminência dos chamados “cisnes negros” – uma ocorrência grave, inesperada, surpreendente e aleatória –, a inércia do sistema pode ser o mal menor ou a abordagem mais realista.

Refiro-me, por exemplo, à vitória do Senhor Trump ou à eventual vitória da Senhora Le Pen em França, daqui a quatro ou cinco meses, ou às consequências da saída do Reino Unido da União Europeia, ou a um conflito grave entre a Espanha e o Reino Unido por causa de Gibraltar, ou, para não irmos muito longe, um cisne mais pequeno, por causa da central de Almaraz, um conflito territorial grave com a Espanha.

Que quero eu dizer com isto? A Escócia, a Catalunha, a Valónia ou a Flandres sentem-se confortáveis por pertencerem à União Europeia e à sua Europa das Regiões, porque a sua inércia, a inércia da União Europeia, é capaz de acomodar graves conflitos em razão de uma série de procedimentos e processos de negociação institucional, que amortecem os choques, sobretudo, no tempo que estamos a viver.

Esta é, também, a razão pura para o associativismo e a cooperação territorial descentralizada. Por isso é que eu digo que uniões, associações e comunidades são sempre bem-vindas porque, ao fazerem a pedagogia prática do contraditório, amortecem projetos aventureiros, sejam uniões de facto ou de jure.

De resto, no mundo aberto e global em que vivemos, a geometria variável ajusta-se sempre melhor à volatilidade dos problemas e das soluções.

Nesta linha, o município tem de ser pensado de dentro para fora e de fora para dentro. Por isso, o município precisa de ter um “ministro dos negócios estrangeiros” e relações diplomáticas, porque o município é tão pequeno que a sua atividade mais pertinente acaba por ocorrer fora das fronteiras do município.

3. A décima nota

O mesmo se diga em relação à região do Algarve. O Algarve é uma região-cidade e um paradoxo como região porque tem 430 mil habitantes. Não é uma região com cinco milhões de habitantes, nem é uma cidade compacta com 430 mil habitantes, é mais uma cidade-arquipélago.

É, se quisermos, um híbrido, um híbrido regional, e é por isso que eu digo que o Algarve tinha tudo a ganhar se se projetasse no Sudoeste Peninsular, entre as áreas metropolitanas de Lisboa e de Sevilha, onde se incluem também o Alentejo e a Andaluzia Ocidental.

Ou seja, que a Euro-região dos AAA seja uma aventura com conta, peso e medida, que nós devemos procurar e prosseguir hoje em dia.

Mas não apenas no Sudoeste Peninsular em sentido estrito. Estou a pensar também nos países magrebinos, nos países da CPLP e no Brasil/Mercosul, já para não referir as implicações que o Brexit trará para as relações transatlânticas.

Quando olhamos segundo esta perspetiva mais aberta para o Sudoeste Peninsular, abrem-se muitos outros cenários de desenvolvimento que é imperioso explorar em benefício da Euro-região AAA e do Algarve.

Notas Finais

Nesta mesma linha de raciocínio, há um artigo que eu vos convido a ler, se tiverem oportunidade, publicado no jornal online Sul Informação, sobre a Europa das Regiões.

A União Europeia criou um regulamento, o regulamento dos AECT, que quer dizer Agrupamentos Europeus de Cooperação Territorial, para fazer a cooperação entre territórios de maneira descentralizada. Uma Euro-cidade pode ser um AECT, uma Euro-região pode ser um AECT.

A região lá de cima, entre a Galiza e o norte de Portugal, já é também um Agrupamento Europeu de Cooperação Territorial. Há benefícios europeus para estes agrupamentos.

Uma última nota sobre o valor imaterial de um território, o chamado fator (i). Hoje em dia, um dos fatores imateriais mais atrativos de uma região são as suas paisagens literárias. Se eu tiver um escritor local ou um poeta local que tenha celebrado a sua terra ou a sua região, posso, a partir daí, organizar visitas e eventos literários e artísticos, como faz, por exemplo, a Fundação Eça de Queirós no concelho de Baião, com A Cidade e as Serras do escritor Eça de Queiroz.

Quer dizer, os escritores e poetas que cantaram a nossa terra podem ser um excelente pretexto para a visitação turística, logo um fator imaterial a suscitar um pretexto para fazer turismo.

Ainda sobre o fator (i) e a vaga recente de start-ups e empreendedorismo de base tecnológica. Nos últimos anos, já destruímos várias “agendas temáticas”. Por exemplo, a igualdade de oportunidades, o desenvolvimento sustentável, o desenvolvimento local e territorial em certa medida, agora depositamos uma esperança enorme no empreendedorismo de base tecnológica.

Quer dizer, criamos, em determinados momentos, “agendas temáticas” que parecem resolver os problemas todos do país e, depois vamos queimando, queimando, queimando, porque, afinal, não era a solução mágica que todos esperávamos.

Com as start-ups e o empreendedorismo tudo recomeça mais uma vez. Vêm aí as incubadoras, os FabLab, os espaços de co-working, vamos criar uma bolha tecnológica, à nossa medida, que vai crescer e explodir.

O saldo será sempre positivo, pois, apesar de tudo, a inovação na área administrativa também irá crescer, ao ritmo próprio da administração.

Estou a pensar nos grandes “dinossauros institucionais” da era moderna: os municípios, as universidades, os sindicatos, as igrejas, os partidos, as grandes instituições sociais e culturais do Estado social.

Vamos assistir, de um lado, à transformação digital das grandes instituições-burocráticas da 2ª revolução industrial, do outro lado, à tomada do testemunho pelos nativos digitais através das plataformas digitais e as redes sociais da 3ª revolução industrial. A grande mudança já começou.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

 

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