Mário Soares, um Presidente Ambientalista!

Muitas histórias se contarão a partir de agora sobre as caraterísticas políticas do Dr. Mário Soares, que, para alguns, serão […]

Muitas histórias se contarão a partir de agora sobre as caraterísticas políticas do Dr. Mário Soares, que, para alguns, serão sempre defeitos e, para outros, qualidades! Lutas políticas, decisões económicas e geoestratégicas, nacionais, europeias, lusófonas e internacionais! Haverá certamente escolhas para todos os gostos.

Dessas lutas, haverá muito quem possa (e deva…) escrever com propriedade, tantos foram os co-protagonistas desses episódios que com ele ajudaram a escrever a história recente de Portugal, onde eu simplesmente não estou incluído.

Porém, ainda que hoje a linha editorial das notícias que nos chegam diariamente inclua, em permanência, algumas novas sobre ambiente, sustentabilidade, alterações climáticas e emissões de gases com efeito de estufa, a verdade é que nem sempre foi assim!

Nos já idos anos 90 do século passado, ao tempo em que os ambientalistas eram conhecidos por serem uns putos mal-educados e contestatários do desenvolvimento, e o recentemente criado Ministério do Ambiente era rotulado como o Ministério do Não, tantas eram as recusas de deixar destruir o que restava de espécies e habitats por esse país fora e que empatavam o progresso, o Dr. Mário Soares exercia o seu segundo mandato como Presidente da República.

E eu, que não me achava assim tão mal-educado, era um dos putos que colaborava ativamente no movimento ambientalista, à altura, na Associação Almargem, no Algarve.

Numa decisão até então inédita na área do ambiente, o Dr. Mário Soares inicia, em 1994, uma presidência aberta – uma inovação não mais abandonada pelos seus sucessores – dedicada precisamente ao ambiente!

Conhecido que ficou como o presidente mais viajado de sempre – já se percebeu que o Dr. Marcelo ficará conhecido por um outro feito, o de acrescentar a palavra “Marselfie” ao nosso léxico, já que no fim do mandato dificilmente haverá um português que não tenha tirado uma “Marselfie” – tal predileção do Dr. Mário Soares pelas viagens teve seguimento não apenas fora de portas, mas também no país real!

E quando o país real mostrou ao Dr. Soares os rios e ribeiros inundados em esgoto bruto e de cheiro nauseabundo, ou as lixeiras a céu aberto nas traseiras das encostas dos arrabaldes das vilas e cidades, o Dr. Soares não ficou indiferente!

Fez-se acompanhar de Governantes, deu muito trabalho de escrita aos assessores políticos que se desdobravam em missivas com pedidos de esclarecimento e mensagens ao Governo e ouviu de forma atenta e consequente muitos gritos de medo e desespero, dos muitos que penavam diariamente com o lado negro que os arautos do desenvolvimento teimavam em esconder e, quando não o conseguiam, explicavam como os custos inevitáveis do progresso e da garantia de emprego!

Deu-se o curioso caso de ter tido a oportunidade de acompanhar a visita que o Dr. Mário Soares fez questão de incluir nessa presidência aberta de 1994, ao Parque Natural da Ria Formosa, mais precisamente às ilhas-barreira da Culatra e do Farol (que sendo fisicamente a mesma formação geológica, um perímetro militar separava em dois núcleos distintos).

Nessa visita, foram muitos os depoimentos de habitantes a relatar o desespero de sentirem o estalar das suas casas, aquando da realização da periódica e imemorial atividade militar de rebentamento das munições obsoletas, incluída nas atividades de formação que todos os anos eram realizadas ao largo da ilha, usualmente em pleno mês de Agosto!

A esta descrição acompanhada da demonstração de paredes, tetos e telhados repletos de fissuras, em que algumas comportavam a entrada da mão humana, juntaram-se as descrições dos pescadores que tentavam ilustrar, diga-se, com muito mais dificuldade, o deserto em que se transformavam as águas, nas quais não se pescava um só peixe nas semanas seguintes a tais rebentamentos! Tudo isto arrancava, do semblante já carregado do Dr. Soares, uma reação de espanto e descrença que não o deixaria ficar indiferente!

Sem o frenesim dos diretos “online” e redes sociais que hoje nos dão conta, ao minuto, do que pensam os políticos, quase mesmo antes de os próprios terem tempo de elaborar sobre algumas ideias que partilham – só isso explica algumas partilhas verdadeiramente épicas – passaram-se muitos meses até que se ouvisse de novo falar sobre este episódio que tinha visivelmente perturbado o Presidente da República!

Perigosamente mais cedo que o habitual, um alarme soa estrondosamente no Parque Natural da Ria Formosa! A atividade de rebentamento de munições obsoletas que tinha indisposto o Dr. Mário Soares, e sobre a qual se veio a saber que tinha dado nota vincada às instâncias militares responsáveis, tinha sido antecipada.

Em vez de se realizar em Agosto, em plena época balnear, estava agora prevista para se realizar em Junho, na mais sensível época de nidificação das muitas aves que ocupavam o espaço deserto entre o Farol e os Hangares, e que em Junho, teriam nos ninhos os seus juvenis ainda demasiado jovens e pouco desenvolvidos para poderem empreender qualquer reação de fuga e defesa!

Era uma decisão estranha, sobretudo porque parecia dar cumprimento a uma vontade, mas que protegia aqueles que menos precisavam, os veraneantes, ao mesmo tempo que impunha de novo o sofrimento das populações, a que o Presidente não havia ficado indiferente!

Esgotados que estavam os canais diplomáticos e administrativos entre a hierarquia do Parque Natural, do Instituto que o tutelava e os responsáveis políticos que haviam recebido dos militares a resposta que tal alteração ia ao encontro duma vontade expressa pelo Sr. Presidente da República, subsistiu a indignação de alguns funcionários mais bem informados, que à revelia da sua estrutura de comando, deixariam verter o assunto para a comunicação social.

Sucedem-se as perguntas dos jornalistas aos ambientalistas, tendo na altura respondido que simplesmente não acreditava que esta decisão tivesse origem numa vontade do Dr. Mário Soares, duvidando mesmo que tal fosse sequer do seu conhecimento, tão presente que tinha ficado na minha memória a sua indignação face aos testemunhos das populações do Farol e da Culatra.

Com data de início marcada para o último dia do mês de Junho de 1995, o exercício militar de rebentamento das munições ao largo do Farol e Culatra mobilizou um conjunto de voluntários da Associação Almargem, que alinhavaram um comunicado de imprensa e pintaram uma faixa de protesto para contestar, no local, bem cedo, aquilo que nos parecia ser uma decisão inaceitável, mas que a mim particularmente me indignava!

A manhã rompeu silenciosa na ilha e o correr do dia não trouxe a confirmação da realização dos rebentamentos! A faixa estrategicamente colocada na vedação do perímetro militar não resistiu à primeira passagem do Zebro da patrulha de militares, mas nós mantivemos as nossas posições até perto da hora do almoço!

Numa chamada telefónica de um café da ilha para um jornalista conhecido, somos informados que os militares negavam o exercício e que, da Presidência da República, não falavam sobre o assunto. As noticias da hora de almoço davam conta do protesto, mas as primeiras declarações dos responsáveis eram evasivas e contraditórias. Desmobilizámos e voltámos à sede da Associação.

Num ato de atrevimento próprio da juventude, decidimos telefonar para o contacto que tínhamos da Presidência da República, que nos havia sido deixado no ano anterior, aquando da realização da presidência aberta para o ambiente que havíamos acompanhado.

O assessor responsável pela área do ambiente, que amavelmente nos atendeu o telefone, à nossa expressão efusiva de indignação e perplexidade, respondeu de forma simpática e firme que o Sr. Presidente tinha tomado boa nota do problema que tinha constatado no local e que tinha transmitido a quem de direito que tais ocorrências eram inaceitáveis. Pelo que estava certo que tal não voltaria a ocorrer. Agradecemos e ficámos expectantes!

As notícias do jornal da noite eram já claras e firmes, os militares transmitiram a decisão de que não mais voltariam a realizar rebentamentos de munições obsoletas, qualquer que fosse a altura do ano! Nem em Junho, nem em Agosto!

Nunca falei com o Dr. Mário Soares! Nem sobre este, nem sobre nenhum outro assunto! Pedalei mais tarde ao seu lado numa sua passagem por uma ação da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta!

Mas guardo dele esta boa memória e acredito que foi, de facto, um político que colocou o ambiente nas suas prioridades! Portugal ganhou com isso! Eu pelo menos, devo-lhe um obrigado!

 

Autor: Nuno Banza é engenheiro de Ambiente e inspetor geral do IGAMAOT

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