Crónicas do Sudoeste Peninsular (X): Almaraz e os cisnes negros das relações peninsulares

A normalidade das relações peninsulares é, geralmente, aferida por laços cordiais de boa vizinhança institucional e até de amizade pessoal […]

A normalidade das relações peninsulares é, geralmente, aferida por laços cordiais de boa vizinhança institucional e até de amizade pessoal entre os respetivos responsáveis político-partidários, para lá, evidentemente, das boas relações económicas e empresariais no quadro do mercado único e da União Europeia.

Mas a “pós-normalidade” também afetará, tarde ou cedo, as relações peninsulares. Estou convencido de que não se deve subestimar esta eventualidade, ou seja, a ocorrência de um ou mais “cisnes negros” deveria preocupar as entidades e instituições peninsulares e uma espécie de mecanismo de alerta preventivo poderia e deveria acautelar esta eventualidade tendo em vista evitar males maiores no próximo futuro.

O risco moral está por todo o lado, os danos colaterais também. A central de Almaraz e os problemas recentes são um bom pretexto para falar dos “acontecimentos imponderáveis” nas relações peninsulares.

1. Almaraz
Almaraz já não é, sequer, um “cisne negro em estado puro”. Entre 1983 e 2016, houve meia centena de incidentes na central. A escala internacional de ocorrências nucleares prevê sete níveis de gravidade. O nível 1 é tratado como anomalia, o nível 7 como desastre equivalente aos acidentes de Tchernobil (1986) e Fukushima (2011).

Nesta escala internacional, os incidentes de Almaraz foram colocados no nível zero, mas isso não nos liberta de preocupações, nem nos deixa tranquilos.

A construção de um aterro de resíduos nucleares e o prolongamento eventual do tempo de vida útil de uma central já antiga, situada a 100 km da fronteira portuguesa, são um acrescido motivo de preocupação.

Aparentemente, a política do facto consumado por parte de Espanha pode pôr em causa as relações peninsulares. O problema segue para as instituições europeias. Aguardam-se os próximos episódios.

2. Os transvases nos rios peninsulares
Em causa, mais uma vez, o rio Tejo e as “guerras da água” para o século XXI. Já sabemos que a Península Ibérica será especialmente atingida pelos efeitos das alterações climáticas, muito em especial os períodos de seca severa.

Ao invocar “situações hidrológicas excecionais”, o governo espanhol autoriza o transvase de grandes massas de água da bacia do Tejo para o sul de Espanha, em particular para as províncias de Múrcia, Alicante e Almeria.

Em 2016, a decisão do governo central em Madrid foi contrariada pelo governo regional de Castela-Mancha e já não é a primeira vez que tal acontece.

Nas relações bilaterais, a Convenção de Albufeira regula a gestão de bacia dos rios peninsulares. No caso dos caudais do rio Tejo, enquanto do lado espanhol se afirma que foram “escrupulosamente cumpridos”, no lado português diz-se que os caudais são “anormalmente baixos”.

Como os problemas em causa têm a ver com abastecimento de água às populações, produção de energia e agricultura intensiva teremos, tarde ou cedo, conflitos territoriais em perspetiva, não apenas no interior de Espanha mas, também, entre Portugal e Espanha.

3. Negociações do Brexit e impacto nas relações peninsulares
O terceiro cisne negro diz respeito aos eventuais efeitos colaterais das negociações entre o Reino Unido e a União Europeia, isto é, ao impacto discriminatório das negociações do Brexit sobre o futuro das relações peninsulares.

Estou sobretudo a pensar nas opções que as empresas multinacionais com sede fiscal no Reino Unido poderão adotar e na “guerra de incentivos” de toda a ordem para atrair essas empresas para o território peninsular.

A centralidade madrilena de um lado, a velha relação histórica do Reino Unido com Portugal, de outro, serão alguns dos argumentos utilizados, que, suspeito, não serão suficientes para impedir algumas “traições de última hora”.

Neste particular, o Atlântico não será mais, tudo leva a crer, um oceano pacifico como até aqui. De resto, a política do novo presidente americano será o “grande cisne negro” das relações transatlânticas.

4. OTAN, alterações estratégicas, logísticas e operacionais
O quarto cisne negro diz respeito à política de segurança e defesa. A política de contenção dos EUA em matéria de defesa e segurança, sobretudo no teatro europeu, leva-me a pensar que uma outra repartição de custos de logística e operação será inevitável e que a União Europeia, tarde ou cedo, acabará por promover uma outra reafetação de meios nesta matéria, onde se incluirá, muito provavelmente, uma mudança na estrutura de comandos territoriais na Europa.

A eventual reorganização dessa estrutura de comandos poderá ocasionar algum mal-estar no relacionamento peninsular face àquilo que tem sido o lastro histórico do nosso relacionamento no quadro da OTAN onde se incluem, também, as missões atribuídas ao nosso território insular.

5. A projeção das águas territoriais e os conflitos de jurisdição
O quinto cisne negro diz respeito à projeção das águas territoriais e aos eventuais conflitos de jurisdição daí decorrentes.

A revisão dos limites das zonas económicas exclusivas pedidas pelos dois países ibéricos e a consideração do papel essencial desempenhado pelos territórios insulares dos dois países, podem estar na origem de alguns equívocos político-diplomáticos de alguma relevância.

Sabemos bem a importância do fator marítimo no conceito estratégico nacional e a relevância da próxima geração de políticas do mar na geopolítica dos países peninsulares.

Neste particular, o simbolismo político-diplomático em redor da jurisdição das Ilhas Desertas ou Selvagens é bem a prova de que uma eventual “colisão” destas duas projeções territoriais deve ser abordada e tratada com extremo cuidado para evitar males maiores.
6. Os choques assimétricos no setor do turismo
O sexto cisne negro diz respeito aos choques assimétricos com impacto sobre o setor do turismo. O turismo é um setor vital para os dois países ibéricos e qualquer choque assimétrico mais significativo pode ocasionar, imediatamente, fluxos erráticos e contingentes de visitação turística no interior do espaço peninsular.

Eis alguns desses choques assimétricos: a falta crónica de água em zonas turísticas, um grave acidente nuclear em Espanha, a poluição dos rios e das rias, um derrame petrolífero ao largo da costa, um fluxo repentino de refugiados, um grave conflito político-diplomático em redor de Gibraltar, um acontecimento grave decorrente de um ato de terrorismo.

Todos estes eventos são possíveis e alguns podem estar mesmo encadeados se não forem abordados a tempo e horas. As relações peninsulares serão obviamente afetadas por estes acontecimentos.

7. Gibraltar, Ceuta e Melilla
O sétimo cisne negro diz respeito à geopolítica do vizinho espaço magrebino. A estabilidade política no espaço magrebino é um bem comum extraordinariamente precioso para a estabilidade das relações peninsulares.

O alinhamento dos problemas relacionados com a jurisdição territorial sobre Gibraltar, Ceuta e Melilla faz parte do mesmo xadrez geoestratégico e deveria ser abordado com extrema cautela, para não repetir no Mediterrâneo ocidental aquilo que já acontece no Mediterrâneo oriental.

Os dois países peninsulares deveriam unir esforços nos planos bilateral e multilateral e no quadro da União Europeia para abordar de forma preventiva e cautelar os problemas do Mediterrâneo ocidental que não deixarão de surgir.

8. Iberismo, radicalização política e separatismo regionalista
O último cisne negro diz respeito aos movimentos sociais e às movimentações mais radicais no espetro político-partidário.

A este respeito, as negociações do Brexit poderão ser muito instrutivas para o Reino Unido e a União Europeia e, também, para os dois países peninsulares.

O eventual desmembramento territorial do Reino Unido seria um verdadeiro terramoto político, um autêntico cisne negro, de consequências imprevisíveis sobre o sistema político-partidário europeu e os movimentos separatistas europeus.

Assistiríamos, porventura, a alianças e coligações hoje improváveis e não me surpreenderia que, ao lado do separatismo regionalista catalão, basco e galego, surgissem correntes unionistas iberistas no quadro da União Europeia, reclamando maior protagonismo para as “macrorregiões europeias”, como, de resto, a própria União Europeia já sugeriu.

Nota Final
Com se percebe, em quase todos os casos referidos, as ausências e omissões da União Europeia estão na origem e explicam um grande número de cisnes negros.

De resto, aqueles que aqui foram citados nem sequer são, em bom rigor, “cisnes negros em estado puro”.

Já há muitos sinais de que tal poderá acontecer. Muitos deles estão já em marcha enquanto aguardam por um elemento provocador.

O mais relevante é mesmo a sua interdependência e o efeito fractal ou caótico. Neste particular, o grande cisne negro pode bem ser a política transatlântica ou a falta dela e os dois países ibéricos na primeira linha dos problemas.

Esta é, pois, a “pós-normalidade” das relações peninsulares. Não sabemos ao certo se acontecerão, quando acontecerão e quem os fará acontecer.

Seja como for, e para tranquilizar os mais sobressaltados, lembro aqui o grande mérito das instituições europeias, qual seja, o de lidar com processos e procedimentos que transformam problemas graves em problemas crónicos. Nos tempos que correm, não é de somenos importância.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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