Crónicas do Sudoeste Peninsular (VII): Vem aí 2017! O Mundo, a Europa e as Relações Peninsulares

Os principais protagonistas da cena internacional, nas vésperas do Ano Novo, estão perante a iminência de tomar decisões geoestratégicas sem […]

Os principais protagonistas da cena internacional, nas vésperas do Ano Novo, estão perante a iminência de tomar decisões geoestratégicas sem saber bem o alcance e as repercussões dessas decisões. No fundo, podemos estar, mesmo, na iminência de assistir ao desmoronamento das principais instituições que fizeram a ordem internacional após a 2ª guerra mundial e à beira de um novo equilíbrio de poderes.

Entretanto, ao mesmo tempo, um novo mundo emerge, no qual, nas palavras de Hannah Arendt, “o súbdito ideal do regime totalitário não é o nazi convencido nem o comunista militante, mas sim o homem para quem não existem diferenças entre facto e ficção, nem entre verdadeiro e falso”. Passadas algumas décadas sobre estas palavras, a cibercultura deu-lhe o nome de pós-verdade. Doravante tudo pode acontecer. É o tempo do imponderável, dos cisnes negros.

I. O Mundo, o regresso às áreas de influência e ao equilíbrio de poderes

Estamos progressivamente a voltar à doutrina das áreas de influência e equilíbrio de poderes, ao mesmo tempo que procuramos legitimar essas opções no quadro de um multilateralismo mole e defensivo, ele também cada vez mais frágil e vulnerável.

A eleição de Donald Trump nos EUA e as incógnitas em redor da sua política exterior, a política de confrontação da Rússia tendo em vista recuperar o seu espaço vital, a afirmação imperial da China como grande potência do século XXI, o Grande Médio Oriente e a iminência de decisões geoestratégicas de grande alcance por parte das potências regionais, a multiplicação de estados falhados, de guerras por procuração e de refugiados, o terrorismo internacional, a que se acrescenta o elevado risco político que atravessa a União Europeia neste momento, em consequência de uma vaga de populismo sem precedente, eis um cocktail explosivo como há muito não se via, no preciso momento em que se realizam eleições gerais nos principais países fundadores da União Europeia.

Nas palavras de Henry Kissinger, antigo secretário de estado norte-americano, “o mundo está um caos”. Entre os efeitos perversos da globalização financeira e os efeitos perversos do nacionalismo económico, o mundo avança em modo de navegação à vista.

Os “homens providenciais” estão de regresso. Os povos trocam liberdade por segurança. Nas palavras do filósofo Zigmunt Bauman, estamos em “interregno”, isto é, na transição da modernidade sólida para a modernidade líquida. Preparemo-nos para o impacto, 2017 será um ano de grande turbulência.

II. A Europa perante uma vaga de populismo radical

Em 2017, o tratado de Roma que criou a Comunidade Económica Europeia (CEE) completa 60 anos. No mesmo ano em que, pela primeira vez, um Estado membro decide formalmente abandonar a União Europeia, e logo um Estado membro com a dimensão do Reino Unido.

No mesmo ano em que a União Europeia “luta pela sobrevivência” em eleições legislativas e presidenciais na Holanda, França e Alemanha, contra uma vaga de radicalismo, populismo, autoritarismo e xenofobia.

Já para não referir a Itália e a Espanha, com governos em situação política muito instável, a que acresce, no caso da Itália, um sistema bancário em situação de quase bancarrota.

No princípio da Primavera, de acordo com a primeiro-ministro britânica, terá início o processo negocial relativo ao Brexit. Não sabemos ainda qual será abordagem negocial preferida.

Seja como for, uma abordagem mais dura das negociações por parte da União Europeia visará impedir um precedente, que é o de evitar que outros Estados membros se sintam estimulados a sair, seguindo o exemplo britânico.

Pelo contrário, uma abordagem mais suave pode incentivar alguns países a solicitar a abertura de processos de renegociação de alguns capítulos da sua adesão. Não faltariam candidatos nos países do leste europeu.

Em qualquer dos casos, as abordagens escolhidas afiguram-se muito ingratas para os partidos do centro político europeu tradicional.

Se a União Europeia endurecer a sua posição, essa opção pode favorecer as posições nacionalistas dos partidos mais radicais, que esperam “uma brecha” para renegociar a sua adesão.

Se a União Europeia suavizar a sua posição, os partidos mais radicais vão criticar a União, por se limitar a sobreviver custe o que custar e com isso aproveitar para acumular capital de queixa e fazer ganho de causa.

Esta coincidência ou convergência entre um processo político difícil como é o Brexit, a ocorrência eventual de novos atentados terroristas, a chegada de novos fluxos de refugiados (a problemática relação com a Turquia) e os sucessivos atos eleitorais até ao Outono de 2017, colocam a União Europeia e as suas instituições à beira de um ataque de nervos e tudo isto numa conjuntura económica de baixo crescimento, que não favorece, por exemplo, a recuperação e consolidação do setor bancário europeu e a coesão social europeia.

É deveras chocante a impotência das instituições europeias para fazer passar uma mensagem de confiança, assertividade e esperança políticas, no preciso momento em que tudo parece convergir para fazer implodir o edifício europeu.

A propósito, é bom não esquecer quem toma as decisões na União Europeia e não lavar as mãos como Pilatos: são os Estados membros em Conselho de Ministros e em Conselho Europeu quem delibera politicamente, umas vezes por unanimidade outras vezes por maioria. É batota, pois, fazer jogo duplo, isto é, quando tudo corre mal, a responsabilidade é assacada à União Europeia e suas instituições, quando tudo corre bem, os méritos pertencem aos Estados membros. Assim não vale. É também esta atitude de duplicidade que tem contribuído para confundir os cidadãos europeus.

2017 é o ano em que “nada poderá falhar quanto tudo pode falhar”. Este é o desafio que impende sobre os líderes europeus e os Estados membros, em particular sobre os seis países fundadores, aqueles que em 1957, em Roma, deram início a esta grande aventura de paz e prosperidade.

Esperamos sinceramente que o dia 25 de Março de 2017 seja o dia do renascimento e das luzes e não o dia em que “tudo começou novamente”.

A cimeira especial prevista para Roma tem uma agenda verdadeiramente impressionante: a revisão da política externa face ao Grande Médio Oriente e ao Norte de África, o controlo da fronteira exterior e o conceito de segurança interna em face do fluxo de imigrantes e refugiados, a regulação do Espaço Schengen daí decorrente, a regulação da globalização em face dos grandes tratados de comércio internacionais, as negociações do Brexit e a natureza do mandato negocial, a política de crescimento e emprego para a Europa e, nesse âmbito, o mercado único da energia e do digital.

Será tudo isto possível sem uma revisão dos tratados europeus? Vamos acompanhar os próximos desenvolvimentos.

III. As Relações Peninsulares e a coabitação feliz

Tudo o que dissemos no plano mundial e no plano europeu terá consequências muito importantes sobre o espaço peninsular e a natureza das relações entre os dois países ibéricos.

Depois da intervenção da Troika em Portugal e do plano de consolidação financeira para o setor bancário em Espanha, as duas economias têm apresentado comportamentos distintos.

Nos dois últimos anos, a economia espanhola cresceu mais do dobro da economia portuguesa, e, o que é mais relevante, este crescimento aconteceu num ambiente político-partidário de grande instabilidade interna em Espanha.

Sendo a Espanha o nosso maior parceiro comercial e um mercado natural para as nossas empresas, é imperioso manter a todo o custo a coabitação feliz entre os dois países peninsulares, para lá dos problemas imensos que poderão atravessar a União Europeia em 2017 e nos anos seguintes.

Esta coabitação pode ser afetada, designadamente, pelos seguintes eventos:

– As negociações do Brexit podem introduzir algumas discriminações nas relações peninsulares; Portugal, em particular, pode ser tentado a aproveitar-se dessa discriminação; os dois países devem proteger as suas relações, na medida do possível, desta eventualidade;

– O separatismo regionalista no Reino Unido e na Espanha podem pode pôr em risco as tradicionais relações peninsulares; os dois países devem poder antecipar os riscos desta eventualidade;

– A radicalização dos sistemas político-partidários domésticos e a alteração da sua relação de forças podem pôr em risco as boas relações existentes no plano institucional; os dois países devem poder antecipar e prevenir esta eventualidade;

– A realização do mercado ibérico da eletricidade e o lançamento do mercado único digital devem ser considerados e aproveitados como duas excelentes oportunidades para aprofundar a integração peninsular; a “macrorregião da península ibérica” pode ser usada como região-piloto para este efeito e fazer uma frente única nesta matéria;

– A projeção do espaço peninsular para a América Latina e para os países de expressão oficial portuguesa deve ser uma oportunidade para ensaiar novas cooperações empresariais e para pôr a crescer as duas economias ibéricas;

– A fronteira entre os dois países peninsulares reveste-se de um enorme simbolismo; nas palavras do primeiro-ministro português, a fronteira é o novo lugar central do relacionamento ibérico e a política de coesão para as regiões de fronteira irá pôr à prova e revelar o real empenhamento político que os dois governos guardam nesta matéria.

Nota Final

Como dissemos, em Março de 2017, realiza-se, em Roma, por ocasião dos 60 anos do tratado de Roma que criou a CEE, uma cimeira especial sobre o futuro da União Europeia. Seria, também, uma excelente oportunidade para os dois países ibéricos se apresentarem com propósitos comuns e propostas conjuntas, visando o aprofundamento político, social e económico da União Europeia. E por que não a partir do próprio exemplo de uma “união peninsular”?

2017 será um ano de enorme turbulência política nos planos mundial e europeu. O Atlântico não será, provavelmente, um oceano muito pacífico.

Saibamos proteger as relações peninsulares dessa turbulência. As relações no quadro peninsular têm de ser cultivadas com enorme bom senso para podermos ter no sudoeste europeu uma pequena ilha de paz e desenvolvimento.

As Euro-regiões e as Euro-cidades, pelas relações de boa vizinhança que estabelecem, serão sempre um bom instrumento e um excelente pretexto. Aproveitemos pois.

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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