Crónicas do Sudoeste Peninsular (VI): A Dieta Mediterrânica, tradição e inovação no rural tradicional algarvio

“Nós não vemos as coisas como elas são, nós vemos as coisas como nós somos” Anais Nim Já sabíamos que […]

António Covas“Nós não vemos as coisas como elas são, nós vemos as coisas como nós somos”
Anais Nim

Já sabíamos que o modo de olhar para um problema é uma parte importante do problema. Já sabíamos, também, que não podemos resolver problemas novos com conceitos velhos. Conhecíamos, além disso, os inúmeros equívocos associados à chamada modernização do rural tradicional.

Dito isto, talvez valha a pena começar por lembrar alguns mal-entendidos que ressurgem sempre que falamos de tradição e inovação. Por maioria de razão, a Dieta Mediterrânica, por enquanto um simples epifenómeno, pode estar na origem de alguns desses equívocos. Este escrito serve como aviso à navegação.

I. A relação complexa entre tradição e inovação
Na breve viagem que fizemos ao futuro do rural tradicional algarvio, a pretexto da Dieta Mediterrânica, a emergência da 2ª ruralidade não é tão simples como presumíamos. Há alguns equívocos que são recorrentes. Senão vejamos:

– Não há nenhuma “seta do tempo” que nos diga que a tradição é o que fica para trás e a inovação o que chega do futuro;
– Não há nenhuma “relação de necessidade” entre tradição e inovação como se uma fosse a causa e a outra o efeito;
– Não há nenhuma “relação dicotómica ou oposição declarada” entre tradição e inovação como se estivéssemos em face de dois grupos de interesses antagónicos;
– Não há uma “relação de linearidade” entre tradição e inovação, ao contrário, é a circularidade que marcará o futuro desta relação;
– A tradição é um valor essencial, é a substância do tempo, a inovação tem um valor instrumental;
– A melhor maneira de haver inovação é existir diversidade e pluralidade no mundo rural, isto é, quanto mais tradição mais inovação.

Termino este tópico com uma referência ao teólogo brasileiro Leonardo Boff quando diz, muito a propósito: “a água antes de cair do céu cultiva-se cá em baixo, na mãe natureza, no modo como cuidamos do solo, do coberto arbustivo, das árvores, da diversidade de agriculturas e das linhas de água”.

É verdade, na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, quer dizer, a tradição é a matéria-prima com a qual se faz a inovação.

II. Os “marcadores do processo de inovação” no rural tradicional algarvio
O espaço rural é cada vez menos um espaço de produção e cada vez mais um espaço de consumo. O espaço rural é cada vez menos um rural agrícola e cada vez mais um rural conservacionista, lúdico, de recreio e lazer, um espaço terapêutico e de celebração em infinitas modalidades e manifestações.

Quer dizer, os “marcadores do processo de inovação” do espaço rural chegam por muitas vias, em diferentes compassos de tempo e protagonizados por atores muito variados.

De uma forma mais sistemática ou mais analítica, são os seguintes os processos de inovação em curso no rural tradicional algarvio:

1. A modernização agrária e ecológica, sobretudo por via do acesso fácil à tecnologia,
2. A turistificação das amenidades naturais, por via das várias modalidades de turismo em espaço rural,
3. A patrimonialização dos recursos, por via do cuidado e da atenção e, também, por via de mais e melhor investigação histórico-cultural,
4. A territorialização das políticas, por via do incentivo a novos modos de governança territorial onde os municípios e as associações de desenvolvimento local têm desempenhado um papel importante,
5. A virtualização das relações, com a chegada do “fator (i)”, por via de um cuidado especial com os fatores imateriais e intangíveis e o suporte tecnológico das plataformas digitais.

Estes processos de modernização/inovação, ora concretos ora difusos, estão a chegar do futuro por vias muito diversas, em velocidades muito diferentes e com protagonistas com inspirações muito diferenciadas.

A modernização/inovação do rural tradicional algarvio não é uma via de sentido único e, como já dissemos, a coabitação pacífica entre tradição e inovação será o segredo dessa mudança.

O que me preocupa mais, neste momento, é, porém, não estarmos a falar de um “território desejado” e de uma estratégia territorial com um “regulador acreditado” que tenha legitimidade para regular os cinco processos de inovação antes referidos.

Reina a casuística, o imponderável pode acontecer a qualquer momento, a turistificação é de longe o processo hegemónico e gerando graves desequilíbrios internos, a regulação política regional não existe.

III. A tipologia das agriculturas no rural tradicional algarvio

Dissemos no início que, no espaço rural, há cada vez menos espaço de produção e cada vez mais espaço de consumo. Quer dizer, temos à nossa frente uma mistura muito variada e colorida de modos de ocupar o campo e de fazer agricultura. Eis uma primeira aproximação exploratória a essa variedade de agriculturas:

1. A agricultura das quintas novas: mais cosmopolita, criativa, ecológica, uma agricultura de fusão de atividades, protagonizada por neo-rurais das mais variadas proveniências, com residencialização variável, agricultura de nichos, produtos e serviços gourmet e eventos cosmopolitas os mais diversos;
2. A agricultura acompanhada pela comunidade: uma agricultura social e comunitária de proximidade feita a partir de clubes, associações, cooperativas, redes locais apoiadas em plataformas tecnológicas e colaborativas na linha da economia da partilha e do institutional food;
3. A agricultura convencional verticalizada: uma agricultura industrializada e tecnológica que contratualiza com as médias e grandes superfícies comerciais, com standards de qualidade impostos/contratualizados pelas cadeias de distribuição; trata-se de um modelo de agricultura extrovertido, pouco regionalizado e quase estranho ao rural tradicional algarvio;
4. A agricultura convencional regionalizada: uma agricultura de micro e pequena dimensão integrada no rural tradicional algarvio, com ligações aos mercados locais, às organizações de produtores (OP), às cooperativas locais, aos intermediários e angariadores locais;
5. As agriculturas de autor: as agriculturas com um desenho alternativo, ligadas a formas de ecologia radical, com atividades lúdicas, criativas e culturais de inspiração pessoal e artística em formatos e manifestações muito diversos.

IV. Os riscos envolvidos nos processos de inovação

“Estar na moda” envolve sempre alguns riscos, sobretudo se não há regulação política e prevenção adequada desses riscos. O risco é maior se existir uma grande assimetria na forma como ocupamos o território. Eis alguns desses riscos:

1. Uma modernização que seja fruto do acaso ou do oportunismo,
2. Uma nova vaga de especulação imobiliária, urbana e rústica, e uma pressão inusitada sobre os proprietários,
3. Um movimento de gentrificação de população idosa nos núcleos urbanos e rurais mais procurados,
4. Uma turistificação excessiva, com sobreaquecimento dos recursos naturais e um aumento do custo de vida,
5. Uma perda crescente de identidade e degradação do capital simbólico no rural tradicional algarvio,
6. Uma Dieta Mediterrânica como mero elemento decorativo de uma “turistificação cosmopolita de massas”,
7. Uma administração pública regional totalmente desadaptada à nova situação, sem autoridade nem legitimidade para ser um regulador político acreditado,
8. O risco de uma “uberização turística” regional com agravamento da precariedade laboral e conflitos internos entre clientelas e operadores.

Nota Final

Chegados aqui, a Dieta Mediterrânica, património imaterial da UNESCO, é um excelente pretexto para desencadear uma reflexão aberta e profunda sobre os processos de modernização/inovação do rural tradicional algarvio.

É, todavia, necessário sublinhar que esta reflexão acontece num momento muito especial, uma vez que a turistificação da atual conjuntura pode ser instrumentalizada pelas melhores e piores razões.

No primeiro caso, para debater serenamente a reestruturação harmoniosa do rural tradicional algarvio, no segundo caso, para “surfar a onda” e tirar partido do oportunismo comercial que cruzará o Algarve em todas as direções.

O choque assimétrico na economia algarvia provocado por uma turistificação excessiva e a “uberização acelerada” que daí decorre não fazem parte do “universo cultural Unesco” e da “doutrina de preservação e valorização” que está contida nas suas declarações de património imaterial. Nem tão-pouco dos processos de inovação da inteligência coletiva territorial.

Esperemos, pois, que prevaleça o bom senso e que a Dieta Mediterrânica seja uma oportunidade única para modernizar, na boa direção, o rural tradicional algarvio. Voltaremos ao assunto.

 

Autor: António Covas é professor catedrático da Universidade do Algarve e doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

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