A Europa das Regiões

Na agenda política europeia e nacional, pode parecer paradoxal, na atual conjuntura, falar de Europa das Regiões e de doutrina […]

António CovasNa agenda política europeia e nacional, pode parecer paradoxal, na atual conjuntura, falar de Europa das Regiões e de doutrina regionalista da União Europeia.

A opinião publicada de referência é dominada pela geopolítica dos grandes países, a macroeconomia da zona euro e a microeconomia do mercado único europeu.

A mesopolítica e a mesoeconomia das euroregiões, das áreas metropolitanas, das redes de cidades e, de uma maneira geral, dos agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT), são observadas com alguma sobranceria a partir das capitais e consideradas como variáveis endógenas da política macroeconómica e financeira decidida em Bruxelas e Frankfurt.

Acresce que, no quadro das políticas de ajustamento em vigor, as políticas regionais acabam por funcionar como instrumentos de gestão da procura agregada e, portanto, sujeitas ao “stop-go” dessas políticas e à sua “descontinuação” na transição entre quadros comunitários de apoio e períodos de programação plurianual.

 

A pertinência geopolítica de uma Europa das Regiões

Três episódios recentes vêm sublinhar ainda mais a relevância geoestratégica e geopolítica de uma Europa das Regiões no projeto europeu.

Falamos, em primeiro lugar, da crise dos refugiados e da sua integração plena no quadro de uma Europa das Regiões, em segundo lugar, do precedente criado pela recente renegociação britânica no quadro europeu e o Brexit ulterior, que beliscaram as autonomias regionais e que suscitam uma nova abordagem da Europa das Regiões, falamos, por último, das inúmeras responsabilidades e implicações internacionais que, neste momento, sobrecarregam a União Europeia no que diz respeito à assinatura e implementação de grandes tratados transoceânicos de comércio e investimento (TTIP e Canadá) e suas complexas implicações regionais na coesão territorial europeia.

A questão central que aqui se coloca é a ordem de importância relativa dos temas em agenda e as prioridades políticas que se estabelecem quando não há tempo e recursos para atacar todos os problemas de uma só vez.

Face aos graves problemas em agenda neste momento, é bem provável que alguns “assuntos menores” tenham de ser sacrificados e que um desses assuntos seja, justamente, a coesão territorial no interior da União Europeia, por maioria de razão quando a “teoria da estabilidade e da condicionalidade” prevalece sobre a “teoria da coesão e da solidariedade”.

Essa é, também, a razão pela qual nós dizemos que falta uma doutrina regionalista à União Europeia e que é um “crime de lesa-europa” não aproveitar o potencial de “crescimento distribuído” que reside na Europa das Regiões, nas redes de cidades e nos agrupamentos europeus de cooperação territorial.

 

Uma Doutrina Regionalista para a União Política Europeia

Estamos em 2016, passaram oito anos sobre a eclosão da crise sistémica do capitalismo europeu. A economia europeia está praticamente estagnada desde então e, por isso, as dúvidas são legítimas quanto a um desenvolvimento equilibrado, harmonioso e sustentável (artigo 3º do Tratado da União Europeia) e nada garante que a sociedade da informação e do conhecimento em que já vivemos seja um factor reequilibrador e virtuoso desse desenvolvimento.

Pelo contrário, as condições de partida favorecem as aglomerações já existentes e as clivagens regionais poderão reaparecer, ainda, com mais força.

De 2010 para cá, os países do sul da Europa foram sujeitos a vários regimes de condicionalidade macroeconómica no quadro do pacto de estabilidade e crescimento, do tratado orçamental e do semestre europeu, para lá de outros procedimentos de correção macroeconómica em vigor no âmbito dos chamados “Packs”.

Como já dissemos, a doutrina dominante de regulação macroeconómica tratou o espaço-território como uma variável endógena, sendo a política regional considerada, em primeira instância, como um instrumento de gestão da procura agregada. Veja-se, por exemplo, o que tem acontecido ao investimento público em Portugal.

A consequência imediata deste ajustamento severo é uma “nova geração de desequilíbrios regionais” que pode pôr em causa, inclusive, o esforço de investimento e convergência feito em quadros comunitários de apoio anteriores.

Esta verificação objetiva de uma regressão importante nos níveis de convergência económica e social da política regional dos países do sul da Europa significa que não há, neste contexto tão severo e competitivo, problemas regionais definitivamente resolvidos.

Em 2016, há, além disso, tal como em 2008, sinais preocupantes de um regresso dos “gémeos tóxicos” aos mercados financeiros. Face às intervenções de emergência já efetuadas e aos regimes de condicionalidade ainda em vigor, ninguém, neste momento, pode assegurar qual será a configuração final da política regional nos anos mais próximos.

Eis alguns sinais pouco abonatórios:

– O prolongamento do ambiente deflacionário na economia europeia, não obstante a política de quantitative easing do BCE (compra de ativos financeiros ao sistema bancário) visando subir a taxa de inflação;

– Quebras nas bolsas europeias das ações dos bancos em consequência do mecanismo de bail in da resolução bancária;

– Elevada volatilidade e instabilidade nas taxas de juro da dívida soberana, embora sem atingir os níveis elevados dos anos 2010-2013;

– Dúvidas sistemáticas a propósito da restruturação das dívidas soberanas no plano europeu que alertam para a possibilidade de novos defaults;

– Falta de ajustamento simétrico entre os países europeus com saldos correntes excedentários e os países deficitários da zona euro;

– Graves problemas de financiamento da economia real devido à simultaneidade das operações de desalavancagem do crédito e de recapitalização bancária;

– Reformas estruturais na produtividade e na competitividade de importância muito desiguais e lags temporais muito acentuados, cujos efeitos tardam em produzir resultados efetivos;

– Grandes dificuldades em gerir as expectativas dos diferentes estratos da população e em mobilizar a poupança interna para o investimento, em resultado do emagrecimento e empobrecimento das classes médias;

– Extrema vulnerabilidade em lidar com os riscos globais e os choques assimétricos por falta de meios próprios disponíveis e mobilizáveis para as políticas de prevenção e emergência;

– Desaceleração significativa das taxas de crescimento nas economias emergentes com reflexos na procura externa, nos fluxos financeiros e nos investimentos externos desses países.

Esta conjunção de fatores críticos está já a marcar a evolução do sistema de política regional e a cooperação territorial da União Europeia, se observarmos, por exemplo, a lentidão exasperante com que está a ser montada toda a engenharia técnica e financeira do quadro comunitário de apoio para o horizonte 2020.

Basta lembrar, ainda, o peso excessivo do serviço da dívida soberana nos orçamentos nacionais dos países do sul, os valores ridículos do investimento público orçamentado e a falta de capitais próprios (dívida privada) para realizar investimento privado para termos uma perspetiva aproximada do que será a política de coesão territorial até 2020 e, mais grave, o valor do PIB potencial no final do período, relativamente ao qual se mede, por exemplo, o défice estrutural do orçamento nos termos do tratado orçamental da União Europeia. O caso português é, de resto, o mais eloquente a este propósito.

Tudo somado, este é também o momento oportuno para elaborar um pouco mais “fora da caixa” no que diz respeito à política de coesão mais convencional que, em minha opinião, continua a girar muito em redor das clientelas e dos destinatários habituais.

Refiro-me aqui ao que poderíamos designar como “a doutrina regionalista” da futura União Política em duas perspetivas distintas: em primeiro lugar, numa linha de “integração negativa”, digamos “Linha Brexit”, ao mesmo tempo mais liberal e mais intergovernamental, em segundo lugar, numa linha de “integração positiva”, mais integracionista e unionista, mais neo-keynesiana, alguns dirão iliberal.

Na primeira perspetiva, a “linha Brexit” é essencialmente uma linha “de mínimos”, de regresso ao mercado comum, a uma política regulatória mais defensiva e, acima de tudo, a uma arbitragem comercial mais desgovernamentalizada na linha do que propõe, por exemplo, o TTIP.

Esta perspetiva conduz-nos, muito provavelmente, a uma linha intergovernamental e a um governo de diretório em que seriam dominantes os seguintes traços:

– A chamada Europa das Regiões seria um assunto puramente intergovernamental e meramente decorativo no plano europeu, embora alguns “eventos globais” possam destinar-lhe um papel importante (por exemplo, o acolhimento de refugiados);

– Uma erosão da componente parlamentar do sistema político ao nível do Parlamento Europeu, dos Parlamentos Nacionais e dos Parlamentos Regionais, isto é, apesar do Tratado de Lisboa, o défice de controlo parlamentar seria agravado e transformar-se-ia numa fonte potencial de mal-estar para o sistema europeu de cooperação territorial;

– A macroeconomia orçamental do pacto de estabilidade, do tratado orçamental e do semestre europeu seria considerada desajustada e teria de ser revista numa linha mais desconcentrada e intergovernamental;

– A diversidade das situações regionais reclamaria, também uma maior diversidade de soluções regionais; a forma diferenciada como os Estados membros estão politicamente constituídos (federais, regionais e unitários) permitiria receber e aplicar os princípios de coesão territorial e subsidiariedade de modo diferente;

­ Uma política de coesão regional territorialmente mais cooperativa poderia surgir como um espaço de concertação de iniciativas e projetos, associada a fórmulas organizativas mais inovadoras e libertas da tutela administrativa mais tradicional; de resto, a cooperação regional descentralizada poderia funcionar como instrumento estabilizador de eventuais conflitos político-sociais e evitar que surjam regionalismos emergentes nas suas formas mais perversas;

– A Europa das Regiões poderia ser promovida por uma razão menos comum e que tem a ver com a segurança coletiva da União e da sua fronteira exterior; o reforço da ajuda à fronteira exterior da União, primeira porta de entrada de fluxos erráticos de população daquelas zonas, é fundamental para prevenir crises agudas de regionalismo que, por esta via, poderiam conseguir argumentos adicionais para emergirem com uma legitimidade renovada; no mesmo sentido, e no âmbito da política de relações exteriores e segurança comum, pode a Europa das Regiões ser transposta para fora da União sob a forma de cooperação transfronteiriça e transnacional; é outra faceta da política regional que precisa de ser claramente explicada às regiões europeias, sob pena de se exacerbarem os egoísmos regionais face a regiões de terceiros países, e precisa, ainda, de ser adequadamente traduzida e reforçada do ponto de vista orçamental.

De acordo com a segunda perspetiva, mais integracionista e unionista, o território da União Europeia deixaria de ser uma variável endógena ou então um ator de 2ª ordem para passar a ser um ator de primeiro plano no contexto de uma multiterritorialidade mais claramente federal ou federativa.

Nesta linha de pensamento, a coesão territorial e a política regional teriam de ser variáveis exógenas e poupadas à austeridade de uma macroeconomia disciplinar de curto prazo. Uma abordagem possível e viável desta Europa das Regiões corresponderia a organizar o território europeu através de uma rede de macrorregiões europeias (a península ibérica, os países bálticos, as ilhas britânicas, a península da escandinávia, etc), de regiões transfronteiriças e transnacionais e de redes de cidades (capitais, temáticas, históricas, etc).

Esta Europa das Regiões teria o mérito de ser muito mais cultural, humanística e simbólica, mas, também, muito mais colaborativa e solidária por comparação com a Europa atual das mercadorias e dos capitais.

 

Europa das Regiões, uma outra inteligência coletiva territorial

Estamos no Outono de 2016. Os modelos convencionais de política de coesão territorial parecem estar esgotados, pois são “filhos crescidos” de várias gerações de quadros comunitários de apoio.

De um lado, procura-se uma “afetação mais temática e transversal”, para crescer depressa e melhorar a competitividade global, o que, na prática, favorece mais os territórios já competitivos, de outro, procura-se uma “afetação mais distributiva e regional” que, todavia, apenas proporciona um crescimento lento e não dá garantias de poder resolver os problemas estruturais das regiões menos desenvolvidas.

Em consequência, a continuidade da política estrutural europeia, pressionada de fora para dentro, tal como a conhecemos hoje, não é eficaz e está posta em causa porque gera desequilíbrios e assimetrias na coesão interna da Europa das Regiões.

Por isso, nós dizemos que a vitalidade das culturas locais e regionais e a sua cooperação territorial descentralizada são necessárias para trazer um suplemento de alma à construção do projeto europeu.

E porque aquelas culturas locais e regionais irão acrescentar a sua legitimidade política própria em razão, justamente, das assimetrias criadas, estamos, digamos, obrigados a cuidar e refazer a nossa imagem da representação territorial tendo em vista um novo patamar de relacionamento e desenvolvimento entre as instituições europeias e as euro-regiões no quadro de uma territorialidade europeia mais policêntrica e descentralizada.

Esta territorialidade europeia poderia assumir a forma de um New Deal regionalista e colaborativo de inspiração federal, financiado por “euro-obrigações de crescimento” e ligando macrorregiões europeias, euro-regiões, redes de cidades, de universidades, de associações empresariais, de centros de investigação, de instituições sociais e culturais de todo o tipo, tendo em vista criar capital social e capital simbólico especificamente europeus e, assim, dando corpo, substância e significado ao conceito e à prática de cidadania europeia multiterritorial.

Os exemplos deste New Deal, ao mesmo tempo regionalista e cosmopolita, já existem e podiam abranger: o reforço dos programas de mobilidade de estudantes e investigadores; a responsabilidade social de todas as iniciativas e projetos financiados com fundos comunitários (inclusão de refugiados); a solidariedade europeia para com os grandes riscos globais e os bens comuns da humanidade; um direito específico europeu para lidar com os projetos transfronteiriços e transnacionais (integração de refugiados); um direito próprio e um quadro de cooperação apropriados para as autarquias locais e regionais; um programa europeu de saúde para a mobilidade dos “grandes doentes e deficientes”; uma abordagem comum europeia aos serviços de interesse económico geral; o reforço dos programas europeu de combate à desertificação e uma atenção especial às estratégias de conservação e biodiversidade, um programa europeu de iniciativas locais de emprego visando a integração dos desempregados de longa duração.

Mas esta é a outra Europa, não é?

 

Autor: António Covas
Professor catedrático da Universidade do Algarve
Doutorado em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas

 

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