Queima-me, que eu gosto

Sim, é mais um texto sobre fogos. Não, não vou analisar as causas estruturais da fogachada que cíclica e sistematicamente […]

gonçalo-gomes-21Sim, é mais um texto sobre fogos.

Não, não vou analisar as causas estruturais da fogachada que cíclica e sistematicamente varre o País de Norte a Sul, deflagrando de dia e de noite.

Não vou, tão pouco, abonar a comunidade com pérolas de sabedoria, acerca de organização institucional (acerca desta questão, pouco explorada, recomendo a leitura do artigo do Arqº Paisagista Fernando Pessoa no jornal Público), ordenamento da paisagem, abandono do espaço rural ou elencos vegetais dos nossos povoamentos.

Nem sequer vou largar aquelas insinuações bombásticas, mas apenas alegadas, de que há quem lucre fortunas com a indústria do fogo, e com a conivência da Administração.

Falar dos negligentes então, nem pensar. Em Portugal, só há coitadinhos, nunca culpados, a não ser os maluquinhos da aldeia.

Já dei para esses peditórios, neste mesmo espaço, através de textos que podem ser revisitados, graças às maravilhas do arquivo digital, até porque infelizmente me parecem não ter perdido a actualidade.

Além do mais, enquanto lêem estas linhas, surgiram provavelmente mais umas dezenas de testemunhos de técnicos e especialistas acerca da matéria, também eles apontadinhos ao grande caixote do lixo para onde Portugal atira tantas outras coisas que lhe fazem falta – como os kits de adaptação dos C-130 ao combate a incêndios, que permitiam à Força Aérea Portuguesa envolver-se no combate a incêndios até há cerca de 20 anos e que foram deliberadamente deixados a apodrecer.

O Europeu (agora do nosso contentamento) é de 4 em 4 anos. O verdadeiro desporto nacional em que se transformaram os incêndios é todos os anos.

Por isso, pretendo apenas partilhar a sensação humilhante de estar a ser gozado, enquanto contribuinte e cidadão, que em mim se instala sempre que assisto ao anual frenesim estival dos incêndios, e oiço as declarações das estruturas responsáveis pela prevenção e combate aos mesmos.

Desde o Primeiro-Ministro, que promete uma revolução, mas que se esqueceu de revolucionar o que quer que fosse enquanto foi ministro da Administração Interna de 2005 (cujo Verão foi trágico em termos de incêndios) a 2007, à rapaziada mangas-de-alpaca que mete uma boina tipo militar de esguelha no toutiço e de repente é um Chuck Norris dos incêndios, quando experiência operacional nessa área se limita a deixar queimar a janta por distracção com o seu próprio reflexo na superfície polida da placa vitrocerâmica, ou por se perder no som da sua própria voz a debitar chavões como “efectivo”, “dispositivo”, “ignição” ou “afectação”, passando pela ministra da Administração Interna e o seu anedotário sob a forma de supostas “medidas” que, face ao nível de ingenuidade, desconhecimento da realidade ou simples crença nas vantagens do pensamento positivo, fazem lembrar a fé no poder da reza que o seu efémero antecessor, Calvão da Silva, revelou aquando das inundações em Albufeira, tudo é mau demais para ser verdade.

Em cima do bolo, cai que nem bomba a autêntica cereja que é o insuportável folclore dos tradicionais repórteres esganiçados na frente de fogo, contabilizando “meios” e homens, e entrevistando chamuscados e atordoados transeuntes, sem que isso acrescente o que quer que seja à compreensão e/ou discussão do problema. Informar deveria ser diferente de entreter a sádica avidez mediática dos nossos tempos.

No meio disto tudo, salva-se o voluntarismo das corporações de Bombeiros, que, de forma abnegada, ainda que frequentemente mal preparada, equipada ou coordenada, se prestam ao sacrifício de tentar remediar aquilo que todos os que estão a montante não souberam ou não quiseram prevenir.

Apesar de tudo, são frequentes as críticas à actuação dos Bombeiros. Sendo humanos, não os suponho perfeitos. No entanto, enquanto os vir a fazer mais do que eu, apenas tenho uma palavra: obrigado.

Tudo junto, faz lembrar o terno anúncio de antanho das Fantasias de Natal: “o coelhinho veio com o Pai Natal e o palhaço no comboio ao Circo”. Porque é de circo que se trata, sendo nós os palhaços e coelhinhos a ele conduzidos num crédulo comboio e o Pai Natal aquele a quem nos resta pedir solução para este flagelo.

Sim, porque se ainda há quem acredite que isto acontece por mero azar ou fado, e que para o ano é que é, com mais estudos, planos, projectos e milhões desbaratados, mais vale começar já a escrever a carta. Dezembro chega num instante.

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