As cidades que temos, mas não as que merecemos

Não deixa de ser com um misto de tristeza e até alguma inveja, nutrida pelo desejo de ser tão bom […]

Miguel CaetanoNão deixa de ser com um misto de tristeza e até alguma inveja, nutrida pelo desejo de ser tão bom como os melhores, que olho para a grande maioria das nossas cidades, até mesmo Faro, onde resido, e sou levado a concluir que o cidadão ainda não é a razão de ser da cidade, especialmente quando em comparação com outras, onde de facto é bom viver.

Quão bom seria viver em lugares de excelência urbanística, como aqueles que figuram no topo dos índices mundiais que analisam a qualidade das cidades.

Na sua matriz original, a grande generalidade das cidades eram locais onde o indivíduo se deslocava sobretudo a pé, lentamente. Como tal, cresciam e evoluíam em função das necessidades do Homem, da sua dimensão física, social, emocional, intelectual e espiritual, além de que a maioria das atividades profissionais e sociais aconteciam na rua.

Com o aparecimento do automóvel, o peão passou a ser sucessiva e continuadamente encostado contra o edificado, realidade que surgiu cerca dos anos 20-30 do século passado, com reações uma a duas décadas depois, por movimentos de cidadãos ou de profissionais, que denunciaram, já naquela época, a preponderância do automóvel no espaço público.

Infelizmente, o tempo e a realidade apenas nos têm demonstrado que há um número cada vez maior de veículos, que reclama para si uma cada vez maior porção de território, diminuindo bastante a qualidade da vivência que é possível proporcionar no espaço público das nossas cidades.

Este facto, por si só, provocou grandes alterações ao desenho da urbe, levando ao aumento do perfil das ruas, à simplificação e à retilinearização dos seus traçados, até mesmo influenciando o edificado, mediante a simplificação das formas ou do detalhe inscrito nas fachadas, como resposta à realidade automóvel.

Basta pensar que, à velocidade do automóvel, se torna impossível captar informação desenhada para ser lida à velocidade de um peão.

Ou seja, os detalhes foram simplificados, aumentados em dimensão, para poderem ser lidos à passagem do automóvel, e, com isso, perderam-se muitos dos estímulos que o ser-humano necessita para se manter interessado, preso à rua e à vida na mesma, ao que ali acontece.

Lamentavelmente, nota-se que a vida acontece cada vez menos no espaço público: veja-se o deserto em que encontramos grande parte dos arruamentos.

É muito importante fazer regressar um olhar sobre o espaço público do ponto de vista de quem anda a pé ou de bicicleta. E, neste aspeto, existem muitas variáveis que podem influenciar quão bom ou mau pode ser um passeio a pé ou de bicicleta. Desde logo, porque um passeio a pé não é apenas ir de A até B. É também deambular, acelerar o passo, mudar de direção, ziguezaguear, observar, comunicar com outras pessoas, socializar, ou seja, responder às várias dimensões do Homem.

Como tal, para que uma cidade seja viva, o seu espaço público tem que conseguir cativar os cidadãos a ocupá-lo e a vivê-lo.

Contudo, o que vemos na grande generalidade das vezes são passeios diminutos, irregulares, muitas vezes sem continuidade, salpicados de obstáculos, sem se perceber um corredor de circulação, com papeleiras, árvores, sinais de trânsito, postes de iluminação, tudo desalinhado, ou abrigos nas paragens de autocarro que ocupam quase todo o passeio. Ou ainda os pavimentos irregulares, mal executados, desconfortáveis e por vezes perigosos para caminhar, insuficiência de bancos para promover a paragem e a permanência, ou bancos desconfortáveis e degradados, interrupções desnecessárias na continuidade dos passeios, quando vias secundárias cruzam vias principais, lancis desnivelados, etc.

Se duvidam, convido-vos a observar as ruas por onde passam, mas com um olhar crítico. E perguntem-se: são lugares onde apetece permanecer? São convidativos? Seguros? Interessantes?

Da próxima vez que vir a sua cidade deserta, pergunte-se se o espaço público oferecido é agradável, se convida a passeios ou deslocações a pé.

Ou se, pelo contrário, é dissuasor, se “empurra” para o automóvel, se faz dele o protagonista das vossas vidas e das nossas cidades.

É fundamental recuperar a vida na cidade e isso só será possível projetando a cidade para que sirva o cidadão. É importante equilibrar a balança entre o Homem e a Máquina. Nem é sequer uma tarefa muito difícil. Importa haver um olhar crítico, interesse político e empenho técnico. O tempo urge!

 

Autor: Miguel Caetano
Arquiteto
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