Antes instrumentalizado do que frackado

O anterior Ministro do Ambiente, Jorge Moreira da Silva, afirmou-se surpreendido pelo “interesse repentino” nos contratos de concessão de direitos […]

gonçalo-gomes-21O anterior Ministro do Ambiente, Jorge Moreira da Silva, afirmou-se surpreendido pelo “interesse repentino” nos contratos de concessão de direitos de prospecção, pesquisa, desenvolvimento e produção de petróleo no Algarve, celebrados entre o Estado Português e a Portfuel.

Como interessado retardatário, disponibilizo-me para explicar o porquê: se o processo tivesse sido mais transparente, e a informação amplamente disponibilizada, talvez o escrutínio pudesse ter sido diluído ao longo de um período mais dilatado (apesar de desde há anos se falar).

Como tudo se passou numa obscura caixinha, à qual nem os autarcas eleitos aparentemente tiveram acesso, a coisa teve, e tem, que ser de supetão.

Falar com propriedade é das coisinhas mais bonitas que pode haver, mas para tal, é preciso ter acesso a dados concretos. Tudo o resto é conversa de café que, embora tenha o mérito de entreter, raramente contribui para resolver o que quer que seja.

Ora, se não fosse o esforço desenvolvido pela Plataforma Algarve Livre de Petróleo, a quem é devida uma colectiva vénia pelo seu esforço de disponibilizar, de forma organizada, os diversos elementos (contratos, estudos, cartografia) que permitem instruir uma verdadeira opinião, ainda estaríamos provavelmente a discutir na base da especulação e dos rumores que amiúde iam escapando dos círculos decisórios.

Depois disso, ser ou não favorável à exploração de hidrocarbonetos no Algarve é uma decisão consciente e do foro pessoal de cada um. Respeito a opinião dos que apoiam, como a de Jorge Moreira da Silva, pois é uma prerrogativa sua, mas pessoalmente, e como já escrevi repetidas vezes neste espaço, não consigo encontrar qualquer justificação para tal.

Pior, numa região com fontes renováveis de energia de potencial tremendo que se perde, literalmente, na maré e em cada ocaso, é ridículo, e contraria a transição de paradigma energético que o Mundo pretende abraçar.

Pesa sobre tudo isto o fantasma da fracturação hidráulica (o famigerado fracking, que no último artigo omiti, conforme algumas pessoas me chamaram a atenção, justamente porque não tinha à data tido acesso a qualquer informação fidedigna), que é brincadeira para quebrar autenticamente o Sétimo Selo, pois pode desencadear fenómenos sísmicos imprevisíveis numa região que é, por si só, marcada pela sismicidade e por um intrincado sistema de falhas (basta consultar a carta geológica) e contaminar, através do arrasador cocktail de químicos utilizados, boa parte dos solos e das massas de água subterrânea do Algarve, as quais, num contexto mediterrânico e de alterações climáticas, são uma reserva estratégica de sobrevivência.

Alarmismo? Talvez. Ou talvez não. Analisando a realidade (e a literatura técnica produzida) de países com tradição na aplicação desta técnica, sendo os Estados Unidos da América o exemplo máximo, há todas as razões para desconfiar.

Reforçadas pela constatação de que há um abandono progressivo deste método. Basta ver que o chamado “berço” do fracking, a cidade texana de Denton, baniu a técnica por voto popular. Mais tarde, o lobby voltou à carga e conseguiu implementar-se novamente, mas o que foi posto em movimento não tem volta atrás.

Mais perto, e na União Europeia, países como a Alemanha, a França ou a Holanda têm um histórico de moratórias contra fracking, apesar do combate que lhes tem sido incessantemente movido pela indústria extractiva.

Curiosamente, Jorge Moreira da Silva acrescentou que lhe parece que há uma instrumentalização dos sentimentos da população, orquestrada por “estrangeiros reformados, que gostavam que o Algarve fosse uma terra de índios”.

Talvez seja, não digo que não. Nestes processos há sempre muita coisa a correr em paralelo, e ninguém pode dizer que controla todas as variáveis e intenções.

Índios, por cá, só conhecia mesmo os da Meia-Praia. Mas tudo bem, sejamos todos peles-vermelhas, até porque o Sol meridional morde com outra pujança. Índios ou tuaregues (porque não esqueçamos que somos também deserto a Sul do Tejo), somos os que interessam.

Principalmente porque, como também já antes escrevi, o que me parece central não é a obscuridade do processo de concessão, ou as irrisórias rendas que o Estado possa vir a encaixar, ou se o feliz contemplado do esquema foi o sempre pitoresco Sousa Cintra, ou se os turistas não vão gostar.

Isso é tudo extremamente importante, mas para já, para já, preocupa-me nós, os que aqui vivemos e efectivamente trabalhamos no dia-a-dia pelo progresso da região, e que temos direito – Constitucional e tudo – a um ambiente são e equilibrado.

Por isso me parece, muito sinceramente, que antes instrumentalizado, que “frackado”!

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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