Terras sem Sombra, o festival que alia Património, Música e Natureza, começou em Almodôvar

Quando a jovem soprano Bárbara Barradas acabou de cantar as últimas notas de «Siete Palabras de Cristo em la Cruz», […]

Festival Terras sem Sombra_concerto Almodôvar_01Quando a jovem soprano Bárbara Barradas acabou de cantar as últimas notas de «Siete Palabras de Cristo em la Cruz», um silêncio enorme envolveu a Igreja de Santo Ildefonso, não porque as mais de 600 pessoas que assistiam ao concerto não tenham gostado, mas porque o momento era tão belo que todos ficaram em suspenso. Segundos depois, explodiram as palmas e gritos de “brava!” e todos se levantaram a aplaudir.

Este foi o momento final do concerto inaugural do 12º Festival Terras sem Sombra, no passado dia 27 de Fevereiro, na bela Igreja de Santo Ildefonso, em Almodôvar, no Baixo Alentejo.

Está assim dado o mote para mais uma edição do único festival que, em Portugal, une música erudita (na sua maioria sacra), património religioso construído e património natural.

Este é também o único festival que se prolonga em duas jornadas, a primeira dedicada à música em si, com o concerto no sábado à noite, e a segunda dedicada à preservação da biodiversidade, na manhã do domingo seguinte, com a presença dos músicos, organizadores e público em geral.

Pelo meio há ainda tempo para celebrar outro património deste Alentejo profundo, o gastronómico, com a ceia que se sucede ao concerto, partilhada por todos, e que em Almodôvar foi dedicada a uma açorda de bacalhau.

José António Falcão, diretor do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja e diretor-geral do Festival, não tem dúvidas de que se trata de uma «experiência única». E salienta que «isso mesmo foi reconhecido no ano passado, quando o Terras sem Sombra foi considerado como o 5º melhor festival de mundo na sua especialidade, que é a música sacra».

 

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O concerto de abertura em Almodôvar, intitulado «Como as Árvores na Primavera: Avison, Avondano, García Fajer», reuniu a orquestra barroca Divino Sospiro, sob a batuta de Massimo Mazzeo, e duas sopranos portuguesas que triunfam nos palcos internacionais, Bárbara Barradas e Joana Seara, que mostraram o alcance que o belcanto conhece entre nós, graças ao esforço de novas gerações de artistas líricos que unem o talento a uma preparação técnica invejável.

O mais curioso é que este é um festival que, ao longo da sua dúzia de edições, granjeou um coro de admiradores fiéis. Em 2015, terão sido cerca de 5000 as pessoas que assistiram aos oito concertos do Terras sem Sombra. «As Igrejas estão sempre a rebentar. Mesmo as Igrejas grandes, como esta de Almodôvar, já são pequenas» para receber toda a gente que quer assistir. E há ainda o público indireto, que ouve os concertos transmitidos na rádio, na televisão, na internet.

José António Falcão revela, em entrevista ao Sul Informação, no fim do concerto de Almodôvar, que há «espectadores que vêm do Brasil, de França, da Alemanha, de propósito para assistir a diversos concertos. É que, de facto, algumas destas ocasiões são únicas, os reportórios portugueses e não só, como é o caso deste ano do Brasil, são interpretados pela primeira vez aqui no Festival, e alguns deles não se ouvem desde a época em que foram compostos».

E como é que um festival de província, que tem lugar sobretudo nas igrejas de um Alentejo ainda muito desconhecido, se afirma assim?

«Hoje, no campo da música erudita, como no da música em geral, diluíram-se aquelas tradicionais fronteiras que antes eram apontadas, de uma forma se calhar um bocadinho preconceituosa, entre os grandes centros e as periferias», responde sem hesitar o diretor-geral do Festival.

«Hoje, no nosso país, mas também em Espanha, Itália, França e no resto da Europa, são festivais realizados em territórios com fortes identidades, como é o caso do Alentejo, aqueles que estão a oferecer experiências mais interessantes».

Porquê? Porque «o público talvez viva de um modo mais direto, mais intenso estes eventos», acrescenta.

Por outro lado, «a possibilidade de utilizar espaços que são de uma grande beleza, mas também que têm condições extraordinárias do ponto de vista acústico, acrescem o interesse». E depois «as pessoas, o público em geral e o que aprecia a música, encontra aqui a possibilidade de visitar um país que, embora menos conhecido, é surpreendente».

«Em Almodôvar, nós sentimos isso: há uma identificação entre o público e os artistas. E os artistas, de algum modo, superam-se a si mesmos, e depois nascem daqui coisas surpreendentes, o que faz deste festival uma coisa diferente», garante José António Falcão.

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Nos últimos anos, o Terras sem Sombra tem escolhido para o concerto de abertura Almodôvar e a sua bela matriz dedicada a Santo Ildefonso, uma igreja-salão onde são bem visíveis os requintes do barroco.

E porquê esta escolha de Almodôvar? O diretor-geral do Festival explica que «Almodôvar faz parte de uma rota cultural e turística muito interessante. É uma terra que, pelo seu património cultural, mas também pela vertente da biodiversidade e até dos produtos regionais, se presta muito a que valorizemos este tipo de iniciativas».

«Queremos dar um sinal de apreço pelo Alentejo mais desconhecido e mais profundo», sublinha, admitindo que «seria mais fácil dar início a este Festival noutros locais, mas quisemos sempre vir até aqui, ao coração do Campo Branco, e o público tem-nos recompensado».

António Bota, presidente da Câmara de Almodôvar, agradece este interesse do Festival, dizendo que «é uma honra para nós que comece» naquela vila.

«Isto tem uma importância enorme porque, além do brilho que nos traz em termos culturais, tem também uma projeção nacional e internacional que levam Almodôvar além fronteiras e prestigia o nome do nosso concelho».

O autarca reconhece ainda o movimento que o fim de semana do festival traz ao seu concelho, com o único hotel e os alojamentos de turismo rural cheios, os restaurantes a abarrotar de gente e o mercado e as lojinhas, sobretudo as que vendem produtos tradicionais, a faturarem mais.

«Tudo o que é motivo para trazer turistas a Almodôvar é uma mais valia», assume António Bota, acrescentando que é preciso utilizar «o Festival Terras sem Sombra ou os eventos que a Câmara promove como argumentos fortes para trazer mais turistas ao nosso concelho».

Francisco Almeida Garret, grão-mestre da Confraria do Sobreiro e da Cortiça, um dos convidados da iniciativa, salientaria depois que «há pessoas que vêm ao festival ano após ano e muitas delas não viriam se não fosse por esta razão. Durante o fim de semana do festival, há pessoas que ficam aqui e contribuem para a economia local. Muitas delas regressam depois. Tudo isto tem uma enorme importância para estes territórios mais esquecidos, em especial aqui no Alentejo».

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Na sua edição de 2016, que continua no próximo fim de semana, dias 12 e 13 de Março, com um concerto no Centro das Artes em Sines, o Terras sem Sombra é dedicado ao Brasil, enquanto país convidado. Depois de Almodôvar, haverá ainda concertos em Sines, Santiago do Cacém, Ferreira do Alentejo, Odemira, Serpa, Castro Verde e Beja, sempre sob o título Torna-Viagem: o Brasil, a África e a Europa (Da Idade Média ao Século XX).

E porquê esta escolha do Brasil? É de novo José António Falcão quem responde: «o Festival Terras sem Sombra procura ter uma programação coerente. Não é apenas um belo ciclo de concertos, o que já não seria pouco, mas tentamos que haja um fio, que haja uma coerência muito grande em tudo isto. Mas há sobretudo um aspeto muito importante que é: dar a conhecer ao público da região e a todos os que se queiram juntar a nós uma pequena história da música, contada edição após edição».

Para «dar corpo» a esse propósito, a partir deste ano há um país convidado, tendo começado pelo Brasil, que «tem muito a ver com Portugal do ponto de vista musical», enquanto «o Alentejo tem laços históricos muito profundos com esse país».

O diretor-geral do Festival explica que «o Brasil comunga connosco da mesma evolução musical. Até à sua independência, integrou a mesma tradição musical, não havia distinção entre Portugal e Brasil, mas, mesmo depois da independência, manteve-se essa matriz. Mas podemos dizer que o Brasil é um grande desconhecido entre nós, sobretudo no que diz respeito à música [erudita] dos séculos XIX e XX e agora já dos nossos dias, do século XXI».

Por isso, sublinha, «sentimos que havia aqui uma espécie de dever. Este ano vamos ter estreias, pela primeira vez na Europa, de algumas peças brasileiras e até a apresentação de uma ópera. Como novidade do festival deste ano temos a apresentação de duas óperas e uma delas é brasileira», revelou.

O tema genérico do Festival «Torna-Viagem», deve-se, segundo José António Falcão, ao facto de o Brasil ter herdado «a nossa música, mas depois transformou-a e devolve-no-la enriquecida com o seu próprio legado, com uma grande influência das culturas indígenas e particularmente da cultura africana». No dia 16 de Abril, em Ferreira do Alentejo, o primeiro capítulo dessa ligação musical Brasil/Portugal começará a ser desvendada, com o concerto «Esse Mar, esse Sertão: a Música do Brasil no Tempo do Reino e do Império».

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Mas o Festival Terras sem Sombra, além de música, é também natureza. Isso mesmo salientou o presidente da Câmara António Bota, em declarações ao Sul Informação: «este é também um festival que mistura património cultural com biodiversidade e isso é algo que nos preocupa».

No dia seguinte, no campo, na atividade No Fio da Navalha: Conciliar o Montado com a Agricultura e a Pastorícia, que pretendia contribuir para a valorização do montado português, o vereador Ricardo Colaço haveria de salientar a importância que o município dá ao seu património natural, em especial ao sobreiro. «A cortiça é o nosso ouro. Há centenas de anos que Almodôvar vive do sobreiro», diria o vereador.

Num festival que assenta na trilogia Património-Música-Natureza, uma gelada manhã de domingo foi dedicada a descobrir a riqueza ameaçada do montado. Músicos, o maestro Massimo Mazzeo, as sopranos Bárbara Barradas e Joana Seara, autarcas, técnicos, sapadores florestais, público em geral, gente que se interessa pelos temas da biodiversidade e conservação da natureza, todos deitaram mãos à obra na poda de um povoamento jovem de sobreiros e azinheiras, numa herdade perto da vila de Almodôvar.

Guilherme Santos, do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, explica que aquele era «um projeto exemplo dos muitos que têm sido feitos no concelho». Só nos últimos anos, revela, foram investidos 7,5 milhões de euros e plantados 6800 hectares com quercíneas (sobreiros e azinheiras).

Eugénio Sequeira, professor universitário e investigador reformado, membro da Liga para a Proteção da Natureza (LPN), e uma das maiores autoridades nacionais nos problemas da desertificação, salienta: «esta árvore é o que nos defende do deserto». Mas sublinhou as ameaças que ensombram o futuro do montado de sobro, em especial as causadas pelas alterações climáticas, que têm alterado o regime das chuvas. «As chuvadas são agora cada vez mais intensas. Aqui há chuvadas pontuais de 200 mm/hora, quando esta terra só tem capacidade para absorver 15 mm/hora. Por isso, a água escoa, não se infiltra no solo, e as árvores ficam sem água».

Eugénio Sequeira defende a necessidade de «melhorar a tecnologia rapidamente para reter água no solo» e até apresentou algumas soluções, já ensaiadas com sucesso nas herdades da LPN na zona de Castro Verde.

«A riqueza do montado de sobro não é o dinheiro que ele gera. É o facto de ser a melhor defesa contra a degradação deste ecossistema, é o facto de ser ele que nos defende, em vastas áreas do sul de Portugal, do avanço do deserto», acrescenta.

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Francisco Almeida Garret, grão-mestre da Confraria do Sobreiro e da Cortiça, ele próprio um agricultor e defensor ativo da natureza nas suas terras em Avis, sublinha que «o montado é um dos 34 hotspots mundiais de biodiversidade, é o 2º a seguir à Amazónia».

Mas salienta que o montado é uma paisagem e um ecossistema criado e tratado pelo homem, e é isso que o torna único. «Ter um montado bem tratado não é ter tudo bem limpinho. Isso é matar a floresta», frisou, alertando para práticas erradas, que têm contribuído para o declínio. «Não mobilizo a terra há 30 anos e os resultados estão à vista».

Lembrando que o Festival Terras sem Sombra é uma iniciativa da Diocese de Beja, Eugénio Sequeira cita a última encíclica do Papa Francisco e garante: «se nós não cuidarmos da obra de Deus, a Natureza trama-nos!».

Ana Seixas Palma, uma das pessoas que se juntou ao grupo, na manhã ventosa de domingo, para, de tesoura de poda na mão, ajudar a tratar dos pequenos sobreiros, defende que «a importância destas ações é enorme, porque estamos a juntar a população local, com as pessoas que vêm de meios urbanos, com estes músicos que não têm a noção da importância destas espécies e destes habitats. É importante mobilizar públicos diferentes, para contribuirmos para a melhoria do que é o nosso ambiente».

Seguindo com atenção todas as explicações, o maestro Massimo Mazzeo foi dos primeiros a deitar mãos à obra, de acordo com as instruções de Guilherme Santos. «Que emoção!» exclama depois de, com esforço, ter cortado uma pernada a mais num sobreiro.

A terminar um fim de semana dedicado a celebrar o património nas suas diversas facetas, as duas sopranos Bárbara Barradas e Joana Seara fizeram entoar o seu canto junto a uma das jovens árvores que teimam em resgatar aquela terra, cada vez mais sem sombra, do deserto.

 

fotos: Elisabete Rodrigues|Sul Informação

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