Projeto Life já está a dar primeiros frutos na conservação dos charcos da Costa Vicentina

A rede de Núria Salvador, empurrada com método, durante um tempo cronometrado, pelo fundo do charco temporário de Vale Santo, […]

Charcos_01A rede de Núria Salvador, empurrada com método, durante um tempo cronometrado, pelo fundo do charco temporário de Vale Santo, perto de Vila do Bispo, rendeu dois exemplares de Triops vicentinus, uma espécie de camarão-girino que é endémica, ou seja, única desta região mais sudoeste de Portugal continental.

O Triops vicentinus é mesmo considerado um fóssil vivo, pois persiste desde os tempos em que surgiram os dinossauros (entre 199 milhões e 145 milhões de anos atrás). E esta espécie de triops só existe na Costa Vicentina.

Os dois exemplares recolhidos na redada feita no charco têm dimensões já bem grandes, um deles com uma carapaça medindo um pouco mais de cinco centímetros, o outro com menos de quatro.

Mas as redadas feitas pela bolseira Núria e pela investigadora Margarida Machado numa tarde chuvosa de fevereiro permitiram ainda capturar uma enorme salamandra-de-costelas-salientes (Pleurodeles waltl), alguns pequeníssimos camarões-fada e camarões-concha, larvas de insetos, girinos de sapos-de-unha negra (Pelobates cultripes), e uma infinidade de outras criaturas que vivem naquela pequena lagoa.

«Se fosse há um ano, não teríamos nada disto aqui», disse Margarida Cristo, especialista em crustáceos e outra das investigadoras da equipa da Universidade do Algarve que participa no Projeto LIFE+ “Conservação de Charcos Temporários na Costa Sudoeste de Portugal”. «Havia aqui uma vala, aberta pelo anterior rendeiro da propriedade do Vale Santo, para drenar o charco, e a água não se acumulava». Isto, apesar de os charcos temporários serem considerados habitats prioritários e a proteger no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina…

É que, apesar da rapidez com que completam o seu ciclo de vida – desde que eclodem os ovos, passando pela fase de crescimento, fase adulta e fase de reprodução – os raros Triops vicentinus não chegavam a ter água suficiente no charco para poderem viver.

«Há pouco tempo, depois de termos apresentado o problema ao presidente da Câmara de Vila do Bispo, durante uma visita que fizemos a este charco e em que ele participou, o Município mandou vir aqui uma máquina, que, em duas horas, fechou a vala. Foi preciso esperar dez anos, mas finalmente o charco voltou a encher-se de água», contou Margarida Cristo, à reportagem do Sul Informação.

 

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Triops vicentinus, o camarão-girino que só existe nos charcos temporários da Costa Vicentina e é um verdadeiro fóssil vivo

 

E, com a água, voltou a vida, exuberante, à pequena lagoa temporária, que agora se apresenta coberta de plantas, algumas delas próprias deste habitat, e a fervilhar de fauna. É que, no caso dos grandes branquiópodes (que incluem os camarões-girino, os camarões-fada e os camarões-concha), os seus ovos chegam a sobreviver pelo menos dez anos, à espera de água e temperaturas apropriadas para eclodirem e voltarem à vida.

O charco de Vale Santo é apenas um da cerca de uma centena de lagoas temporárias já identificadas no Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Uma das tarefas do Projeto LIFE Charcos é, precisamente, identificar e cartografar todos os que existem naquele Sítio de Importância Comunitária. «Até ao fim do projeto, em Dezembro de 2017, podem ir aparecendo mais. Ainda no fim do ano passado, descobrimos mais quatro perto do Rogil, não assinalados por ninguém, que nos foram indicados por um alemão que mora em Aljezur», revelam as investigadoras.

Margarida Cristo e Margarida Machado ainda recordam com emoção o dia em que, em 1996 – já lá vão 20 anos – descobriram que, nestes charcos do Sudoeste português, no Pinhal de Sagres e Vale Santo, também havia Triops, estes camarões-girinos que são verdadeiros fósseis vivos. Só em 2010 se confirmou que aqui há uma espécie única no mundo, que foi batizada como “vicentinus” em homenagem à Costa Vicentina.

Este pequeno sobrevivente pré-histórico tornou-se mais conhecido do grande público no ano passado, quando reportagens na televisão deram a conhecer a existência de mais esta espécie única da Costa Sudoeste.

Mas não é só por causa do estranho camarão-girino que estes habitats têm grande importância ecológica e devem ser preservados.

Os charcos temporários mediterrânicos constituem um dos mais notáveis e singulares habitats de água doce da Europa e são considerados um habitat prioritário pelo Anexo I da Diretiva Habitats.

Além de terem um papel importante na conetividade entre outros habitats de água doce, a diversidade de vida existente num charco temporário é muito elevada e até superior à que se pode encontrar em outros meios aquáticos, como, por exemplo, lagoas permanentes ou cursos de água. Muitas das espécies que albergam são consideradas raras e ameaçadas, quer a nível europeu, quer a nível global.

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A investigadora Margarida Machado, no meio de um charco, a ler os parâmetros da água

Margarida Machado salienta que, «na zona sul do Parque Natural, há mais charcos mais bem preservados do que em Odemira, onde 50% dos charcos desapareceram nos últimos dez anos devido ao grande avanço da agricultura intensiva». A destruição dos charcos para dar lugar à agricultura, em especial às estufas, é, aliás, uma das maiores ameaças efetivas à sobrevivência destes habitats.

«A legislação define os charcos temporários como habitats prioritários e a preservar. Mas a verdade é que, durante muitos anos, pouco se soube sobre eles, nem sequer se sabia quantos havia, efetivamente. O Parque Natural e o ICN, que deveriam ter feito o levantamento dos charcos, não fizeram. Só agora é que isso está a ser feito», acrescenta Margarida Cristo.

A produção de cartografia georreferenciada dos charcos e da biodiversidade a eles associada é, aliás, uma das tarefas mais importantes do projeto LIFE Charcos.

«O problema é que, quando se atribuem, por exemplo, subsídios a uma cultura agrícola, a área ocupada pelos charcos é descontada e os agricultores não são compensados por isso», explica a investigadora. Por isso, era mais fácil aos agricultores drenarem os charcos e fazê-los desaparecer, como quase aconteceu no Vale Santo e como certamente sucedeu em muitos outros locais.

Daí que, sublinha Margarida Cristo, poderia ser importante criar medidas de compensação…mas, para já, nomeadamente através da demonstração de práticas de gestão sustentáveis destes charcos temporários e do aumento da sensibilização pública para o seu valor e necessidade de preservação, o que se pretende é envolver proprietários, agricultores, decisores e outras partes interessadas. Pelo menos de modo a que ninguém possa dizer que destruiu por não conhecer…

Aliás, entre as ameaças já identificadas pelo LIFE Charcos contam-se as alterações nas práticas agrícolas e pecuárias, com a intensificação, a fragmentação do habitat (hoje há charcos que até se mantêm, mas rodeados por todos os lados pelo mar de plástico das estufas, o empobrecimento da Biodiversidade associada, a atividade silvícola, a pressão turística, as alterações climáticas (com menos chuva, os charcos vão desaparecendo), e, tantas vezes, a simples falta de informação e o desconhecimento.

Nesta tarefa de tornar os charcos e a sua importância ecológica mais (re)conhecidos, há aliados preciosos, como as escolas. Daí a grande aposta que o projeto tem feito na Educação Ambiental. Na EB 2,3 de Vila do Bispo, os alunos e a professora Beatriz Oliveira transformaram um antigo laguinho de cimento num charco temporário, já povoado por muitas das espécies emblemáticas deste habitat.

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As investigadoras Margarida Cristo e Núria Salvador examinam com atenção o resultado de uma “redada” num dos charcos

Noutros locais, tem sido com a ajuda de voluntários e com o esforço dos próprios elementos da equipa do projeto que alguns charcos estão a ser recuperados.

É o caso do charco da Torre de Aspa. No ano passado, as acácias que quase abafavam a pequena lagoa temporária foram cortadas e arrancadas, libertando um amplo espaço à volta. «Tirámos daqui toneladas de matéria vegetal, em especial de acácias, que são uma espécie invasora», recorda Margarida Cristo. Ajudas preciosas foram dadas pela empresa Algar, «que ofereceu parte da deposição e tratamento das acácias arrancadas», e pela Câmara de Vila do Bispo, «que ofereceu o camião para transportar as plantas».

Há menos de um mês, parceiros do projeto ligados à Universidade de Évora estiveram no local a plantar alguns arbustos, como murtas e loendros, que integram a vegetação típica destas zonas.

Sem as acácias invasoras a asfixiá-lo, o charco está a recuperar a sua saúde. Mas há ainda muito trabalho a fazer, até porque as raízes de acácia que ficaram no solo estão já a rebentar e, se não forem tomadas medidas muito em breve, essas plantas voltarão rapidamente a invadir tudo. «Temos que organizar uma ação, talvez com a ajuda de voluntários, para dar a conhecer a importância dos charcos e trazer cá as pessoas para nos ajudarem a arrancar estas raízes», diz Margarida Cristo.

A recuperação dos charcos é também um dos objetivos do projeto, através da demonstração de técnicas de gestão e restauro que melhorem o seu estado de conservação.

Outro exemplo de recuperação é o charco da Pena Furada, por acaso situado num terreno que até pertence à Câmara de Vila do Bispo. Este é um dos locais que as investigadoras da Universidade do Algarve visitam regularmente, para registar parâmetros diversos, como o PH da água, a temperatura, o oxigénio dissolvido e também a turbidez (coloração da água).

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As investigadoras Margarida Machado e Núria Salvador a fazer a “redada”, para recolher amostras da fauna

Vestindo um fato impermeável de pescador, com botas incorporadas, a bolseira Núria e a investigadora Margarida Machado entram pelo charco adentro, levando na mão diversos instrumentos.

De mangas arregaçadas, Margarida Machado submerge um termómetro digital e grita, para quem, na margem, toma nota dos dados recolhidos em cada charco: «a temperatura é 13,3º. Olha, já baixou: é 13,2º».

A seu lado, mergulhando uma régua graduada na água, Núria Salvador comunica outros dados: «a altura é de 62 centímetros na régua». Logo depois, entusiasmada, comenta: «Eh pá, subiu muito! Se bem me lembro, estava nos 50 e pouco». As chuvas destas últimas semanas têm sido generosas para os charcos temporários e para toda a vida que eles albergam.

Núria é a hidrogeóloga do projeto, encarregada de investigar o comportamento hidrogeológico das lagoas temporárias. Já se sabe que estes charcos surgem em terrenos impermeáveis, capazes de reter a água. Mas há lagoas que só começam a encher muito depois de começar a chover. Como se explica? Uma resposta possível é que o nível da água sofra a influência do lençol freático e do encharcamento pela chuva. Para saber mais, em alguns charcos foram instalados piezómetros, em furos com sondas onde se mede a flutuação do nível da água. O mesmo acontece fora dos charcos, na zona circundante, «para perceber se os terrenos estão encharcados ou não» e «como se processa toda essa dinâmica», explica Núria.

Um desses piezómetros está instalado num terreno onde pastam ovelhas. Quando Núria Salvador lá vai recolher os dados, verifica que ele não está a funcionar. Em conversa com o agricultor idoso que é dono do rebanho, chega à conclusão de que o carneiro achou que o tubo onde está o aparelho, e que sobressai do solo umas dezenas de centímetros, era bom para se coçar… Resultado: avaria.

Apesar do contratempo, as investigadoras gostam de conversar com o agricultor. «Ele diz que sempre viveu aqui e já conhecia o charco. Mas, quando lhe mostrámos a vida que lá existe, ficou maravilhado. Ganhámos um adepto do nosso projeto e da proteção dos charcos», garante Margarida Cristo.

E um dos objetivos do LIFE Charcos é precisamente que, no fim dos quatro anos e meio do projeto, muitos outros adeptos tenham sido ganhos para a causa da proteção deste habitat tão único, importante e sensível.

 

Alguns dados interessantes

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O charco do Vale Santo, recuperado depois de fechada a vala que durante uma década fez, ilegalmente, a drenagem da água

O LIFE Charcos é um projeto coordenado pela Liga para a Proteção da Natureza (LPN), que conta com a parceria de diversas instituições públicas e privadas, designadamente a Universidade de Évora, a Universidade do Algarve, a Câmara Municipal de Odemira e a Associação de Beneficiários do Mira.

Este projeto é financiado a 75% pelo Programa LIFE-Natureza da Comissão Europeia, tendo um orçamento global de cerca de 2 milhões de euros.

O Projeto LIFE Charcos terá a duração de quatro anos e meio, entre Julho de 2013 e Dezembro de 2017.

O Projeto LIFE Charcos está a ser implementado no Sítio de Importância Comunitário (SIC) da Costa Sudoeste da Rede Natura 2000 (parcialmente coincidente com o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina), mais propriamente nas charnecas dos concelhos de Odemira e Aljezur e planalto de Vila do Bispo, por aí se encontrarem alguns dos principais núcleos de charcos temporários a nível nacional.

Saiba mais sobre o Projeto LIFE Charcos clicando aqui.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues|Sul Informação

 

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