Fábrica do Inglês e Museu da Cortiça podem ser classificados como «imóvel de interesse nacional»

O processo para a classificação, com um grau nacional, da Fábrica do Inglês, incluindo o Museu da Cortiça e o […]

Museu da Cortiça_fevereiro 2016_01O processo para a classificação, com um grau nacional, da Fábrica do Inglês, incluindo o Museu da Cortiça e o seu acervo móvel, em Silves, foi enviado na sexta-feira para a Direção-Geral do Património Cultural, que é a entidade a quem compete abrir o procedimento de classificação.

O anúncio foi feito por Rui Parreira, diretor do Serviço de Bens Culturais da Direção Regional de Cultura do Algarve, durante o Fórum «O Futuro do Museu da Cortiça», que decorreu ao longo de um intenso dia de sábado, no Teatro Mascarenhas Gregório, em Silves, numa iniciativa conjunta da Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial (APAI) e Associação Portuguesa de Museologia (APOM).

Este anúncio foi, aliás a única novidade que saiu de oito horas de debate intenso, que passou também por uma visita à abandonada e vandalizada Fábrica do Inglês e ao Museu da Cortiça, fechado desde 2010.

A proposta de classificação é da responsabilidade da APAI, que a entregou na semana passada à Direção Regional de Cultura, «que imediatamente informou o processo, no sentido de concordar com a abertura de procedimento para um grau de classificação nacional, e que o remeteu nesta sexta-feira à consideração da Direção-Geral do Património Cultural [ex-Igespar], que é a entidade a quem compete abrir o procedimento de classificação», explicou Rui Parreira ao Sul Informação, à margem do fórum.

A classificação, se vier a ser atribuída, será de «imóvel de interesse público». «A partir do momento em que for exarado o despacho de abertura do procedimento de classificação, e se o for, os bens – imóvel, património integrado e móvel – entram imediatamente em procedimento de classificação, e depois terão o seu trâmite legalmente definido», explicou ainda aquele responsável.

Do ponto de vista da Direção Regional de Cultura, acrescentou, «é um procedimento que tem toda a viabilidade. Nós, nas atuais circunstâncias, estamos de acordo que o grau de classificação seja de âmbito nacional».

Rui Parreira explicou ainda, nas suas declarações ao nosso jornal, que a decisão cabe agora à DGPC, «ouvidos os seus conselheiros, do Conselho Nacional de Cultura, e ouvindo as partes diretamente interessadas», enquanto a «decisão final é do ministro da Cultura, porque a decisão de classificação de grau nacional é feita por portaria ou mesmo por decreto».

Fórum sobre o Museu da Cortiça
Fórum sobre o Futuro do Museu da Cortiça, no Teatro Mascarenhas Gregório, em Silves

Esta classificação com um grau nacional tem, desde logo, a vantagem de não ser travada pela eventual nova oposição do Grupo Nogueira, o grupo empresarial nortenho proprietário do que resta da cadeia de supermercados Alisuper no Algarve, e que, em Maio de 2014, em hasta pública e de modo surpreendente, comprou o espólio (o acervo móvel) do Museu da Cortiça, sobrepondo-se às licitações da Câmara de Silves, que também o queria comprar.

Desde então, e como recordou, no Fórum, a presidente da Câmara Rosa Palma, em Junho de 2014, a autarquia deu início a uma proposta de classificação do espólio do Museu da Cortiça como de interesse municipal, já que os edifícios em si, todo o complexo da Fábrica do Inglês, a parte imóvel, estavam já classificados com esse grau municipal.

No entanto, no momento em que imóvel – comprado pela Caixa Geral de Depósitos na mesma hasta pública de Maio de 2014 – e móvel passaram a pertencer a duas entidades privadas diferentes, ficou claro que era necessário garantir um estatuto de proteção oficial para o espólio, uma vez que, como foi salientado pela autarca Rosa Palma e por outros intervenientes ao longo das oito horas do Fórum, «a classificação agarra o espólio móvel ao local imóvel», conjunto que tem interesse patrimonial como um todo e não às peças.

Ora, acrescentou a autarca silvense, o Grupo Nogueira opôs-se a essa classificação com grau de proteção municipal, apesar dos oito ofícios enviados pela Câmara de Silves à empresa, complementados por três reuniões, a pedir a sua autorização para a classificação do espólio ou, em alternativa, a oferecer-se para o comprar.

João Nogueira, filho do fundador do Grupo, também convidado para o Fórum, até na qualidade de sócio da APOM, admitiu ter dito que não, inviabilizando assim a classificação com grau municipal do espólio que comprou no leilão. Em declarações ao Sul Informação, o empresário disse: «não demos o aval a esta classificação enquanto não ficarem definidas todas as posições referentes ao Museu. Eu tenho que ter a garantia que depois me deixam lá entrar e visitar o que é meu. Não autorizo agora, mas sou o primeiro a dar autorização logo que sejam clarificadas todas as posições».

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Interior do Museu da Cortiça, durante a visita no passado sábado, que parece, mais do que nunca, parado no tempo…

Só que, com este pedido de classificação como «imóvel de interesse público», deixa de ser um obstáculo a «eventual oposição do Grupo Nogueira». Rui Parreira, da Direção Regional de Cultura, explicou ao nosso jornal, que tal oposição pode manter-se, só que agora «não é vinculativa, ao contrário do que acontece no processo de classificação do património como de interesse municipal, em que a posição do detentor do bem é absolutamente vinculativa».

Rui Parreira acrescentou que «será evidentemente considerada a posição de todos os interessados», mas, mesmo que haja oposição, a classificação irá para a frente, desde que sejam aceites os argumentos apresentados pela APAI para pedir esse estatuto para a Fábrica do Inglês, incluindo o património móvel e imóvel. Ou seja, oponha-se ou não, se a Direção-Geral do Património Cultural decidir mesmo avançar com o processo – o que é previsível – e o ministro da Cultura aprovar – o que também é previsível – de pouco adiantará ao Grupo Nogueira manter o seu finca pé quanto ao espólio de que é proprietário.

O curioso é que, neste como noutros casos, não há fome que não dê em fartura. Neste momento, há dois processos a decorrer – um relativo ao património móvel, por iniciativa da Câmara Municipal de Silves, que decidiu em Outubro abrir um novo procedimento de classificação depois de o anterior ter sido arquivado, devido ao não do proprietário dos bens, e um segundo procedimento de classificação, o tal desencadeado na semana passada pela APAI, que propõe a classificação do imóvel, dos bens integrados e do património móvel que constitui o acervo do Museu da Cortiça, para um grau nacional, provavelmente como imóvel de interesse público.

Fábrica do Inglês abandonada_fevereiro 2016_03
As ervas invadem tudo na Fábrica do Inglês, votada ao abandono

Mas não se pense que a classificação, se vier a acontecer, significará que o Museu da Cortiça já pode abrir portas, logo no dia seguinte ou nos tempos mais próximos.

«Encontrar e definir a solução de futuro para a reabertura do Museu da Cortiça da Fábrica do Inglês, em Silves», era, de facto, o principal objetivo do Fórum que, durante um dia inteiro de sábado, levou o debate às cerca de 50 pessoas que estiveram no pequeno Teatro Mascarenhas Gregório.

Mas esteve ausente uma peça importante de todo este imbróglio: a Caixa Geral de Depósitos que, na hasta pública de Maio de 2014, comprou os edifícios, incluindo o do Museu da Cortiça.

Apesar de convidada, a CGD enviou apenas um email, lido no fórum, que informava não poder estar presente por haver uma «pendência judicial relativa ao imóvel em causa, facto que nos impede de tomar posições relativamente ao mesmo».

A que se refere a CGD? É que, como se o caso não fosse já suficientemente complicado, o Millenium BCP reclama agora créditos à CGD em relação ao processo, o que faz com que os edifícios ainda não tenham sido registados em nome da Caixa…que assim também justifica o facto de nem sequer responder aos ofícios enviados pela Câmara, que reclama que, tendo em conta o estatuto de proteção do complexo da Fábrica do Inglês, a CGD deveria tratar de, pelo menos, manter as instalações em condições de limpeza e segurança.

Algo que, como constataram os participantes do fórum durante a visita – autorizada pelo administrador da insolvência – feita à Fábrica do Inglês e ao Museu da Cortiça, não acontece, de todo! O que por lá se viu foi «portas escancaradas, instalações vandalizadas, lixo acumulado, ervas a crescer por todo o lado, com as raízes a estragar o bem cultural», como resumiu Rui Parreira, da Direção Regional de Cultura.

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Apesar de não correr perigo imediato, parte do espólio do Museu da Cortiça está tapado…com plástico preto, para evitar estragos, como acontece neste retrato a carvão. Quanto tempo mais resistirá o acervo móvel do Museu nestas condições?

Outro elemento a contribuir para a nuvem escura que paira sobre o futuro do Museu da Cortiça – fechado desde 2010 – tem a ver, como já foi referido antes, com a dificuldade de entender quais foram as intenções do Grupo Nogueira ao comprar o espólio do museu em leilão e quais são as suas intenções atuais.

À margem do Fórum, João Nogueira manifestou ao Sul Informação que a sua intenção é «reabrir o museu» e garantiu estar «disposto a investir dinheiro» nesse propósito, embora lhe pareça que a melhor solução seria «uma parceria entre duas, três ou quatro partes, em que nós somos os donos do espólio e os outros exploram o museu».

«O Grupo Nogueira comprou e, como todas as empresas que investem, quer ter retorno», insistiu depois durante o debate. Que «retorno» pode ter uma empresa de um investimento num bem cultural, para além do prestígio que lhe adviria de o colocar ao serviço da comunidade, foi algo que o empresário não chegou a explicar.

João Nogueira revelou ainda que o Grupo se associou à APOM (Associação Portuguesa de Museologia) «desde a primeira hora em que comprámos o espólio». Um sócio com um perfil original já que, embora a APOM conte, entre os seus associados, com entidades privadas proprietárias de museus, esta será das primeiras vezes, se não a primeira, que a associação aceita um membro que é apenas proprietário de uma coleção.

Mas o facto de ser sócio da APOM explica a defesa cerrada que João Neto, presidente desta entidade, fez do Grupo Nogueira, por diversas vezes, durante o fórum. João Neto, durante a sua intervenção à tarde, virou-se para o empresário e disse-lhe: «muito obrigado ao Grupo Nogueira, por não ter deixado que aquele património se estragasse».

Uma afirmação que causou algum espanto na sala, uma vez que, como é do conhecimento público, o grupo empresarial comprou o espólio do Museu da Cortiça durante a hasta pública, licitando contra a Câmara de Silves, que também o queria comprar. Ou seja, mesmo que o Grupo Nogueira não tivesse adquirido a coleção do museu (fazendo até inflacionar o preço base em leilão), esta não ficaria desprotegida, nem cairia nas mãos de quem não a quisesse respeitar, uma vez que o outro comprador interessado era a autarquia, que até tinha inscrito uma verba no seu Orçamento Municipal, e público, com esse fim…

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As ervas e a ferrugem invadem tudo, no exterior do edifício do Museu, onde também está parte do espólio móvel

Outra acha para esta fogueira que ameaça consumir o Museu da Cortiça, galardoado com o prémio “Luigi Micheletti”, para o melhor museu industrial europeu, no já distante ano de 2001, é o facto de, apesar de toda a sua apregoada boa fé e boas intenções, a Alisuper/Alicoop, empresa de que o Grupo Nogueira é atual proprietário no Algarve – e que estava ligada ao proprietário anterior da Fábrica do Inglês e do Museu da Cortiça – estar de novo em processo de insolvência, com salários em atraso e sérias dificuldades em manter os 26 supermercados que lhe restam abertos.

Isso mesmo foi salientado, com o estilo direto que lhe é conhecido, por José Viola, antigo presidente da Câmara de Silves, que acabou por colocar o dedo numa das muitas feridas deste processo: «que credibilidade pode dar esse grupo quando está novamente na falência?»

Jorge Custódio, presidente da Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial (APAI), autor do projeto de museologia inicial do Museu da Cortiça, hoje também envolvido na tentativa de «viabilizar a continuidade» dessa estrutura, nomeadamente através da proposta de classificação com grau nacional da Fábrica do Inglês e de todo o seu património móvel e imóvel, salientou o valor deste complexo, enquanto «documento» e «monumento da civilização industrial».

Classificando-a como um «palimpsesto», com as suas diversas camadas, a Fábrica do Inglês representa, na opinião daquele especialista, «o modelo mais primitivo da fábrica manufatureira», que já não existe na Europa, e a «implementação do sistema industrial inglês» em Portugal. «É um erro a separação em dois lotes de realidades que são uma só», insistiu.

Quanto ao estado atual de abandono e vandalização em que se encontra o complexo, Jorge Custódio anunciou que a APAI «vai exigir à CGD ou a quem for o proprietário» que trate do espaço, porque esse é o seu dever legal. «A APAI vai enviar à CGD um pedido de esclarecimentos sobre esta situação, porque, de acordo com a lei, ela tem a obrigação de proteger e manter o espaço». Se não houver resposta, nem atuação, a associação pretende mesmo, diria mais tarde Jorge Custódio, recorrer ao Provedor de Justiça.

«Não somos contrários à gestão privada do museu, mas há que criar as pontes que visem definir uma estratégia» que garanta a sobrevivência futura, e sem percalços, do Museu», defendeu ainda.

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Interior do Museu da Cortiça, em Silves, durante a visita dos participantes no fórum, no passado sábado

Mas e que futuro poderá ser esse? Reabrir simplesmente o Museu, como ele era quando fechou há seis anos, já então incompleto?

Manuel Castelo Ramos, que foi o diretor do Museu da Cortiça, sugeriu que a Fábrica do Inglês poderia vir a ser uma espécie de Algarve Factory, à semelhança da LX Factory, um espaço aberto à criatividade e à inovação.

Também José Gameiro, em representação do ICOM, a maior organização internacional ligada aos Museus e aos profissionais dos museus, defendeu que interessa sobretudo «o regresso ao futuro», definindo «que Museu da Cortiça queremos, já que o mesmo museu, tal como era, não sei se será possível».

Pode, por exemplo, trazer-se para Silves, numa «visão mais contemporânea do que é um museu», uma «escola de design ou uma nova forma de entender e de abordar a cortiça», no fundo, ideias para garantir a sustentabilidade da estrutura. Mas uma coisa é certa, garantiu José Gameiro: «o museu não pode sobreviver com o espaço à sua volta vazio». Nem sem esse espaço.

Uma nota final – sendo o Museu da Cortiça e a Fábrica do Inglês tema que tem alimentado tanta polémica política em Silves, registe-se que nenhum dos vereadores da oposição – nem do PSD, nem do PS – esteve presente no fórum ou participou no debate. Dos deputados algarvios, estiveram lá José Carlos Barros (PSD), de manhã, e João Vasconcelos (Bloco de Esquerda), de tarde.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues|Sul Informação

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