Na Terra como no Céu

Por norma, no contexto da tradição judaico-cristã e num sentido imensamente lato, há uma clivagem original entre Ciência e Religião, […]

gonçalo-gomes-21Por norma, no contexto da tradição judaico-cristã e num sentido imensamente lato, há uma clivagem original entre Ciência e Religião, no que à abordagem à explicação dos fenómenos que nos rodeiam diz respeito. Tão original quanto a explosão, num caso, ou o pecado, no outro, que dão o pontapé de saída à origem dos tempos.

Esta divergência tem originado, ao longo dos séculos, um conflito de proporções épicas, cujas manifestações constituem mesmo alguns dos episódios mais infelizes da Humanidade, como perseguições físicas e intelectuais a escalas assombrosas.

Mas, e se as distâncias fossem encurtadas, em nome de um objectivo partilhado? Se, independentemente da crença numa natureza divina ou terrena da obra, se gerasse um entendimento comum em torno da importância da sua preservação?

O Papa Francisco I tem sido, desde a sua eleição pelo Conclave de 2013, uma figura de destacado mediatismo, em grande parte devido à sua intervenção em questões quotidianas do Mundo contemporâneo, às quais nem sempre a Igreja Católica Apostólica Romana tem dedicado muita atenção ou tentado grande aproximação, para além do seu aparente desassombro face a alguns dos mais enraizados dogmas desta instituição.

Esta atitude perceptivelmente mais “terrena” por parte do Sumo Pontífice não será alheia à proximidade entre o Papa e o homem, Jorge Bergoglio. O seu mote papal é também significativo, “miserando atque eligendo” que, traduzido do latim, dará algo como “amando e escolhendo”, o que revela uma grande disponibilidade de envolvimento.

Exemplo disso foi a recente encíclica “Laudato si, sobre o Cuidado da Casa Comum”, inteiramente dedicada a questões ambientais.

Através de uma abordagem ecológica verdadeiramente ecuménica, é lançado um apelo abrangente, a todos os credos e etnias, a todas as nações, teorias e ideologias, que dialoguem acerca do modelo de desenvolvimento que sustenta – ou não – o futuro do Planeta e da Humanidade.

O seu conteúdo socorre-se do estado da arte das ciências em diversos domínios, desde a poluição e as alterações climáticas, a disponibilidade dos recursos hídricos, a biodiversidade ou a degradação da qualidade de vida humana e as desigualdades sociais e planetárias – numa perspectiva de ordenamento territorial global.

Não se furta sequer a um capítulo acerca da oposição Ciência/Fé, e das vantagens mútuas e pontes de entendimento que desse diálogo podem surgir. Nessa linha, é curioso o paralelismo que se consegue estabelecer entre o conceito da “casa comum” e das suas reacções aos desequilíbrios introduzidos pela acção humana, e, por exemplo, a teoria de Gaia, de James Lovelock.

Num momento estruturante, às portas da 21ª sessão (COP21) da Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, que decorrerá em França em Dezembro próximo, este texto mereceria uma leitura atenta por parte de todos os responsáveis aí presentes, surgindo como um contributo que apela não apenas às pessoas que professam a fé católica, mas a todos os de “boa vontade”.

Não o afirmo porque seja particularmente crente na eficácia destas Conferências. Já fui mais, seguindo – e a propósito do tema – Messias contemporâneos, cujo cajado científico os suporta de forma sustentada, passe a redundância. Mas qualquer Messias precisa de bons seguidores e o Mundo tem demonstrado ser um “rebanho” bastante caótico…

Afirmo-o porque necessitamos de urgentes mudanças, e todas as ajudas são poucas.

A triste realidade é que os resultados das COP pouco mais têm sido do que manifestos de boas intenções, resultantes de uma terapia de grupo internacional, de valor quase simbólico – apesar de haver importantes e notáveis excepções.

O que não admira, já que a exigência dos países ricos e industrializados aos mais pobres e emergentes, no sentido de que adoptem modelos de desenvolvimento moderados, que não almejem obter o estilo de vida praticado por esses mesmos países industrializados, e que sejam ambientalmente responsáveis, esbarra numa hipocrisia de que somos todos parcialmente protagonistas.

Estaremos nós dispostos a alterar, em certos aspectos radicalmente, o paradigma do nosso estilo de vida? Estaremos prontos para abdicar das comodidades contemporâneas, no seu actual formato de imediatismo? Ou, pelo contrário, gostamos demasiado da facilidade instalada, obtida à custa da exportação dos problemas – deslocação de unidades de produção para países com parâmetros ambientais e sociais mais “largos”, minimizando os custos de produção –, para que depois possamos surgir como autoridades morais perante aqueles que os importaram ou herdaram, voluntária ou involuntariamente?

É um nó górdio que, pessoalmente, não sei desfazer.

De qualquer modo, entendo – mesmo consciente da dificuldade inerente – que é na acção de cada um de nós que reside a capacidade de mudança, nos nossos hábitos e consciência de consumo, nos nossos hábitos de mobilidade (e na exigência de alternativas, quando necessário), nas nossas práticas de gestão doméstica, etc.. De resto, se há coisa que as COP há muito permitiram estabelecer de forma consensual, é o reconhecimento do papel da sociedade civil no fornecimento de impulsos decisivos para as estruturas superiores.

No entanto, há algo no nosso código genético que nos habitua a olhar para o alto em busca de esperança e salvação, seja numa qualquer divindade, num qualquer sábio ou num qualquer Governo – “eles”.

E se antes olharmos para dentro de nós e para a pessoa ao lado, invertendo o ciclo e promovendo a mudança de baixo para cima? Por isso mesmo talvez não fosse má ideia que também nós lêssemos esta encíclica e reflectíssemos sobre o seu aparente convite à intervenção, reconhecendo que deuses, cientistas e políticos, todos precisam da nossa ajuda.

Seja por facto cientificamente provado ou por fé, não importa. Importa é meter mãos à obra na preservação da nossa casa.

Na Terra como no Céu.

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