A era da métrica

Estamos em 2055. As ruas são sujas e já só habitadas pelos piegas, preguiçosos e pouco criativos, que, por responsabilidade […]

anabela afonsoEstamos em 2055. As ruas são sujas e já só habitadas pelos piegas, preguiçosos e pouco criativos, que, por responsabilidade sua, não foram capazes de singrar na vida e aproveitar as oportunidades dadas pelo Sistema para se tornarem verdadeiros empreendedores.

Levam os dias sem fazer nada, procurando restos de comida no lixo dos condomínios privados, ou nos arredores dos armazéns das grandes cadeias de hipermercados, onde esperam encontrar bom cartão para servir de cama, e algum alimento fora de prazo que a lei obriga a que seja oferecida aos piegas, em vez de ser jogada para o lixo.

Muitos dos que vagueiam pelas ruas são jovens, pouco mais que crianças. O Sistema apenas pode integrar aqueles que cumprem as metas (sim, porque o dinheiro não dá para tudo!). Todos os que aos 7 anos não sabem ler 200 palavras por minuto sem errar ou se engasgar são encaminhados para o Programa de Requalificação de Crianças com Déficit de Aprendizagem (PRCDA – as siglas e os acrónimos tornaram-se muito importantes para o Sistema não perder tempo com conversas).

Na realidade, este Programa já não os ensina, porque eles, coitados, não são esforçados o suficiente e só pensam em brincar, atividade muito mal vista pelos líderes do Sistema.

Em 2055, o tempo é precioso e os mercados reagem de modo muito sensível à forma como cada país o gasta. Qualquer país que deixe as suas crianças brincar durante o dia terá, muito provavelmente, a classificação de “lixo”, nas agências de rating.

Existem edifícios velhos que servem de abrigo aos milhares de piegas preguiçosos. Com o tempo, as pessoas deixaram de ir ao teatro, frequentar bibliotecas ou ao cinema.

O Sistema obriga a que não se perca tempo a perceber as coisas. Pensar é um exercício lento, e que não tem retorno imediato passível de ser quantificado. É, portanto, coisa de preguiçosos e piegas. Por isso é que eles são uns falhados.

Claro que, nos grandes centros comerciais dos luxuosos condomínios privados, onde vivem os empreendedores, continua a haver teatro, livrarias e cinema, mas só para aquelas peças e obras que conseguem atingir as metas e chegam ao top do ranking. Essas veem-se e leem-se bem, passam depressa, e não obrigam ninguém a pensar.

São muito frequentes, em 2055, casos de violência completamente inexplicáveis: entre jovens na escola, entre marido e mulher, entre pais e filhos, entre novos e velhos, mas isso será com certeza eliminado assim que se conseguir que toda a gente cumpra as metas e não perca tempo com pieguices.

Sim, porque a violência é coisa de quem tem muito tempo livre…

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