Petronila Augusta Segurado Carneiro Calado, ou Augusta Petronila, como também usava, foi uma cidadã comum, como tantas outras, mas com uma particularidade: um trajeto de vida tão simples quanto singular.
Nasceu em Lagoa, a 6 de janeiro de 1858, e faleceu em Lisboa 103 anos depois, em junho de 1961.
A sua longevidade, muito rara para a época, refletiu, como seria de esperar, o ambiente em que viveu, permitindo-lhe conhecer e acima de tudo usufruir da evolução tecnológica da humanidade.
O seu percurso repartiu-se por Lagoa, São Bartolomeu de Messines, onde viveu durante muitos anos, e também por Lisboa e Açores.
Falar sobre a sua vida, mais de cinquenta anos após a sua morte, é empreender uma viagem à história regional e às vicissitudes de um outro Algarve que Petronila Calado tão bem conheceu, e que, por vezes, omitiu até aos familiares mais próximos.
O seu nome é disso exemplo. Embora originária de famílias abastadas (Júdice, Trindade, entre outras), Petronila foi “exposta”, como então acontecia a muitas crianças, geralmente de fracos recursos, “dadas a criar” a outras famílias. Se tal constituía por si só grande infortúnio, este era ainda materializado para toda a sua existência através do nome que lhe era atribuído, afinal todos os “abandonados” eram registados, ou melhor, batizados (o registo civil só se tornou obrigatório após a implantação da República) com nomes excêntricos.
Se a pequena neófita veria legitimados os seus pais “por subsequente matrimónio” destes, o nome acompanhou-a durante toda a sua vida, e sobre ele poucas ou nenhumas explicações, um segredo que manteve a custo ao longo da vida.
Aos 19 anos (1877) e a escassos meses do seu casamento ,a jovem Petronila empreendeu uma viagem a Lisboa, de barco.
Este constituía o transporte mais rápido entre o Algarve e a capital do reino (cerca de um dia), uma vez que o comboio apenas chegaria a Faro em 1889.
Tendo chegado a Vila Nova de Portimão, devido às condições climatéricas adversas e ao mar alteroso, o navio ou o vapor, como também se designava, não pôde zarpar.
Vários passageiros viram assim os seus intentos frustrados, entre os quais a Viscondessa de Portimão e uma sua afilhada.
A alternativa mais sensata seria aguardar a acalmia necessária para a viagem, sendo que esta podia durar horas ou mesmo alguns dias, ou então atravessar a serra algarvia em diligência, hipótese raramente praticada, desde logo demorada e de risco elevado, pelos assaltos frequentes, ou ainda viajar por estrada até Vila Real de Santo António e aí tomar o barco para Mértola, nova diligência até Beja e finalmente apanhar o comboio para o Barreiro.
Petronila, de espírito irrequieto e aventureiro, não ficou à espera do bom tempo e imediatamente considerou a terceira hipótese, de que já ouvira falar.
Apresentado o projeto à Viscondessa para que se fizessem à estrada, com a vantagem de, em Vila Real, poderem pernoitar em casa de um tio prior, as três chegaram a acordo e tomaram a diligência rumo à vila pombalina.
A viagem decorreu sem incidentes, a não ser as cócegas que o vasto e elegante chapéu de plumas da Viscondessa causava no nariz de Petronila, sentada à sua frente, quando aquela cochilava pelo torpor e cansaço provocados pelo andamento ritmado dos cavalos.
Finda a primeira parte da jornada, foi com grata surpresa que encontraram a residência do pároco em festa: o caso não era para menos, afinal o clérigo ganhara a lotaria, dez mil reis, uma fortuna…
Porém e apesar de todo o momento festivo, as três aventureiras depararam-se com um problema, o controlo alfandegário. Este era frequente e realizava-se em diversos locais do percurso.
Claro que o tipo de viagem forçosamente longa e sujeita a várias mudanças de transportes obrigava os passageiros a levar mantimentos, e o caso em apreço não era exceção. Esse era o problema principal: como passar pelos oficiais da alfândega os chouriços, o presunto e o queijo que levavam com elas?
Mais uma vez, a sagacidade de Petronila resolveu a questão. Na noite anterior à viagem, as três senhoras decidiram remover as “ternures” ou seja, as ancas postiças, último grito da moda parisiense, que acentuava a silhueta e diminuía a cintura.
Em sua substituição coseram e enrolaram nas ancas os chouriços e restantes mantimentos, conservando a elegância e conseguindo uma fácil despensa, bastando, para a alcançar, apenas um levantar de saia…
E a viagem prosseguiu Guadiana acima, depois rumo a Beja e finalmente de comboio para Lisboa, sem que vislumbrassem qualquer problema com o controlo alfandegário.
As astuciosas viajantes chegaram sãs e salvas à capital do reino, possivelmente ao mesmo tempo do barco, mas isso não reza a história, sabe-se sim que chegaram de estômago bem reconfortado e de certeza emanando um odor “muito” agradável dos seus elegantes vestidos.
Petronila casou-se a 10 de janeiro de 1878, em Porches, com José Lourenço Calado (1841-1920), solteiro, 17 anos mais velho, natural de São Bartolomeu de Messines, onde fixarão mais tarde residência.
É aqui que em 1918, em plena Gripe Pneumónica, se isola do exterior, encerrando-se em casa, atitude sensata que lhe permitiu sobreviver à pavorosa epidemia, que arrebatará a nora. Em consequência, assume a responsabilidade da criação das netas.
A argúcia de Petronila manter-se-á durante toda a sua existência, de tal forma que, aos 96 anos, acompanhou a neta, Maria Filomena Calado Florêncio e o marido desta Tenente Serafim Florêncio, numa viagem de avião para a Ilha Terceira, onde fixaram residência, regressando pela mesma via quando já dobrara os 101 anos.
O “Diário Insular” noticiou o acontecimento, bem como a festa do seu centenário, destacando a perfeita lucidez da aniversariante e a animada conversa que manteve com os convidados.
Por sua vez, o farense “Correio do Sul” atribuía-lhe, na edição de de 6 de Janeiro de 1958, o “justo título da mais velha algarvia que não teme quaisquer acidentes de viagem e, decerto, que o da mais idosa passageira que para o aeroporto das Lages terá sido levada de avião”.
Petronila Calado não conheceu a conclusão do aeroporto de Faro, mas tal não impediu que viajasse duas vezes de avião e apreciasse a rapidez e comodidade da viagem, tão diferente daquelas que empreendeu na sua juventude e idade madura.
A sua longevidade, astúcia e espírito aventureiro permitiram-lhe usufruir da evolução dos meios de transporte, do barco ao comboio, dos velhos caminhos medievais, à construção de estradas, primeiro macadamizadas e depois alcatroadas, e destas à aviação. Tudo isto sem esquecer o surgimento do telefone, da fotografia, da rádio, dos automóveis e da televisão.
Quando faleceu em 1961, não foi só o Algarve que se havia transformado, foi a própria Humanidade, e Petronila Augusta Calado não só testemunhou, como usufruiu dessa evolução.
Notas: A origem do nome Petronila constituiu sempre um assunto preterido na família, sendo desvendado pela consulta do seu registo de batismo.
A histórica viagem a Lisboa, em 1877, foi-nos partilhada pela neta Aura Ramos Calado Gameiro, de 100 anos de idade, apoiada pela filha Isabel Gameiro Correia e pela sobrinha Dr.ª Vanda Coelho, às quais muito agradecemos.
Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de História Local e Regional
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