Morreu Günter Grass, o Prémio Nobel para quem o Algarve era um retiro

O escritor alemão Günter Grass, Prémio Nobel da Literatura em 1999, morreu esta segunda-feira aos 87 anos, numa clínica de […]

Günter Grass fotografado no Algarve em 1999 - foto de Telma Veríssimo/Região de Turismo do Algarve
Günter Grass fotografado no Algarve em 1999 – foto de Telma Veríssimo/Região de Turismo do Algarve

O escritor alemão Günter Grass, Prémio Nobel da Literatura em 1999, morreu esta segunda-feira aos 87 anos, numa clínica de Lübeck, na Alemanha, anunciou a editora do autor.

O escritor, poeta, dramaturgo e artista plástico, nascido em Danzig (atual Gdansk, na Polónia), a 18 de outubro de 1927, tinha uma longa ligação ao Algarve, onde era proprietário de uma casa que ele considerava como «um retiro».

Günter Grass tinha uma casa entre o Vale das Eiras e o Carriçal, na freguesia da Mexilhoeira Grande (Portimão), desde os anos 80. Foi uma casa que o próprio escritor desenhou e construiu, no local onde antes existia um velho monte agrícola semi arruinado, entre alfarrobeiras e figueiras retorcidas.

Ali, rodeado pelo silêncio da natureza, entrecortado apenas pelo ruído dos animais, sem televisão, Grass passava longas temporadas em especial na Primavera e no Outono, com a sua numerosa família e com os amigos. Aí se ocupava a escrever, a desenhar, a rever textos.

Mas a mais longa e visível ligação de Grass ao Algarve é através do Centro Cultural de São Lourenço (CCSL) de Almancil, onde apresentou livros e expôs por diversas vezes. «Günter Grass tinha uma estreia ligação a Volker e Marie Huber, os proprietários do Centro Cultural, de quem era amigo próximo», revelou ao Sul Informação a designer Cristina Palma, que foi responsável pelas exposições daquele importante polo de cultura algarvio, encerrado em 2012.

Marie Huber: «conhecemo-nos desde o princípio dos anos 80, quando Günter veio cá a São Lourenço com a mulher e alguns dos filhos. Ele tinha uma grande família e todos passavam férias no Algarve».

Marie Huber, por seu lado, contou, em declarações ao nosso jornal: «conhecemo-nos desde o princípio dos anos 80, quando Günter veio cá a São Lourenço com a mulher e alguns dos filhos. Ele tinha uma grande família e todos passavam férias no Algarve. Uma vez vieram cá ao Centro Cultural, o meu marido e eu recebêmo-los, simpatizámos uns com os outros e decidimos trabalhar juntos».

A primeira exposição foi feita em 1984, quando o artista expôs no CCSL esculturas, desenhos e gravuras relativos ao livro «Die Blechtrommel» («O Tambor»), lançado em 1956, e apresentou o filme baseado nessa sua obra, do realizador alemão Volker Schlondorff.

Desde então, «de dois em dois anos, tínhamos sempre uma exposição dele», recorda Marie Volker. «Ele lançava um livro, nós fazíamos o lançamento do livro aqui e uma exposição com os trabalhos dele que ilustravam esse livro», acrescenta. Ao longo dos anos, e até 2005, «devemos ter feito uma dezena ou mais de exposições de Gunter Grass» no CCSL, acrescenta.

Günter Grass e a mulher, fotografados na receção, organizada pela RTA, a Günter Grass, no Aeroporto Internacional de Faro,  em 02/11/1999, por ocasião da primeira vinda do escritor à região após o Nobel da Literatura - Foto de Telma Veríssimo/RTA
Günter Grass e a mulher, fotografados na receção, organizada pela RTA, no Aeroporto Internacional de Faro, em 02/11/1999, por ocasião da primeira vinda do escritor à região após o Nobel da Literatura – Foto de Telma Veríssimo/RTA

A última, em 2005, apresentou as gravuras que Grass fez para ilustrar um livro de contos de Hans Christian Andersen.

Mas não foi só no Centro Cultural de São Lourenço que o artista expôs, no Algarve. Em 2003, a sua obra foi mostrada no Museu de Tavira/Palácio da Galeria. Jorge Queiroz, diretor do Museu, recorda que a mostra se chamou «Günter Grass – 50 anos – obra plástica», tendo então sido apontada como «a maior exposição de sempre na Península Ibérica» por Marie Huber, que colaborou na iniciativa.

«Foi uma exposição que ocupou o Palácio todo, com aguarela, escultura, desenho e gravura. Marie Huber e Günter Grass vieram cá antes, para falarmos sobre a exposição e conhecer o espaço, e ele gostou muito do Palácio», lembra Jorge Queiroz.

Desta mostra, que foi a penúltima do artista alemão na região algarvia e que atraiu «milhares de visitantes», ficou em Tavira, no acervo do Museu, uma obra «oferecida por Grass» e um catálogo por ele assinado.

Após décadas de ligação profunda à região, em 2010, quando, por razões de saúde, já não vinha ao Algarve, Günter Grass ainda aceitou ser um dos altos patrocinadores do 1º (e único) Festival Internacional de Literatura do Algarve, que decorreu em diversas localidades do Barlavento, em Lagoa, Portimão, Aljezur e Armação de Pêra.

Cristina Palma: Günter Grass era «um homem que gostava muito de contar histórias. Sentávamo-nos com ele à lareira e ele contava histórias. Era fascinante».

Marie e o seu marido Volker Huber, falecido em 2004, foram os grandes amigos algarvios de Grass. Marie descreve o escritor como «uma pessoa muito convivial, que gostava muito de falar, de encontrar pessoas, de receber os amigos».

Grass gostava em especial do peixe algarvio e, quando passava longas temporadas no seu retiro do Vale das Eiras, era ele próprio que ia à praça de Portimão ou de Lagos comprar o pescado bem fresco. O seu peixe assado no forno à algarvia era famoso entre os amigos.

Alguns dos seus desenhos, curiosamente, eram feitos com tinta das lulas, chocos ou polvos que ele comprava no mercado, para comer. Os motivos ligados ao quotidiano algarvio, aliás, eram comuns na sua obra plástica, nomeadamente os peixes na grelha, os troncos retorcidos das alfarrobeiras, as figueiras. E, nos seus escritos, o Algarve também marcava presença, às vezes com pequenos apontamentos do quotidiano, como no diário de viagens «Em Viagem – De Uma Alemanha à Outra», em que Grass várias vezes fala dos seus cozinhados com produtos locais.

Cristina Palma, por seu lado, recorda-se de Gunter Grass como «um homem extremamente calmo, sempre com uma palavra agradável, muito amável, que gostava muito de contar histórias. Sentávamo-nos com ele à lareira e ele contava histórias. Era fascinante».

Jorge Queiroz, diretor do Museu de Tavira, descreve Günter Grass como «um homem cheio de sentido de humor e muito perspicaz, pelas observações e comentários que fazia. Lembro-me de ele ter dito: “Vejam lá o que é a vida: eu, que sou formado em Artes Visuais, acabei por ser Prémio Nobel na Literatura».

Receção, organizada pela RTA, a Günter Grass, no Aeroporto Internacional de Faro, em 02/11/1999, por ocasião da primeira vinda do escritor à região após o Nobel da Literatura - Foto de Telma Veríssimo/RTA
Receção, organizada pela RTA, a Günter Grass, no Aeroporto Internacional de Faro, em 02/11/1999, por ocasião da primeira vinda do escritor à região após o Nobel da Literatura – Foto de Telma Veríssimo/RTA

Nos últimos anos, apesar de manter a casa de Vale das Eiras, Grass já não vinha ao Algarve, porque estava proibido de viajar, por razões de saúde. A casa algarvia, confessou-o várias vezes, era o seu «retiro», «um refúgio onde podia trabalhar com calma», recorda Marie Huber.

É que Grass, sempre inquieto, não vinha para o Algarve para descansar, longe disso: «acho que ele nem sabia o que era a palavra descansar». Durante a sua estadia na região, dedicava «sempre algumas horas a escrever tantas páginas, a desenhar. Ele tinha sempre um plano de trabalho, que cumpria», revela Marie.

Günter Grass ganhou o Nobel da Literatura, em 1999. No discurso de agradecimento, habituado que estava à controvérsia causada pelos seus livros, Grass disse que as reações à sua obra lhe tinham mostrado que «os livros podem causar ofensa, desencadear fúria, até mesmo ódio».

O seu livro de estreia, «O Tambor» (1956), uma mistura de fantasia, saga familiar e fábula política, foi atacado pela crítica, viu ser-lhe negado o prémio de literatura de Bremen e foi até queimado em Dusseldorf…mas tornou-se um bestseller à escala mundial, lançando definitivamente o escritor, que, curiosamente, até se tinha formado em escultura e design gráfico, facetas que nunca abandonou.

Mas a grande controvérsia chegou em 2006, quando o escritor alemão lançou, aos 78 anos, a sua autobiografia «Descascando a Cebola», em que revela partes da sua vida que chocaram o mundo, nomeadamente o facto de ter sido voluntário, aos 17 anos, da tropa de elite Waffen-SS durante a II Guerra Mundial, algo que a sua posição marcadamente esquerdista não deixava adivinhar.

Jorge Queiroz: Günter Grass era «um homem cheio de sentido de humor e muito perspicaz, pelas observações e comentários que fazia».

Na altura, Grass foi muito atacado, nomeadamente por meios ligados ao judaismo internacional, mas foi defendido por alguns dos seus amigos, como o também Prémio Nobel português José Saramago. «Ele tinha 17 anos. E o resto da vida não conta? Parece-me uma reação hipócrita, de muita gente que talvez não consulte a sua própria consciência. Muita gente quer encontrar pés-de-barro em personalidades influentes», disse José Saramago ao diário espanhol El País.

Marie Huber, por seu lado, em entrevista que deu então à Agência Lusa, considerou esse episódio da vida de Grass como um «devaneio de juventude, já se sabia que ele sentia um grande fascínio por fardas» e classificou a polémica como «uma raposa transformada num elefante». Porque é que ele esperou pelos 78 anos para fazer essa revelação? «Talvez não tivesse encontrado o momento certo para o fazer e tivesse medo de desiludir as pessoas», disse Marie, para quem «é para estas revelações que servem as biografias».

Controverso até ao fim, grande amigo do Algarve, Günter Grass morreu hoje, na cidade de Lübeck, onde residia.

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