Equipa de cientistas portugueses descobre bactérias benéficas que protegem contra malária

Num estudo inovador publicado na edição de 4 de Dezembro da revista científica Cell, uma equipa de investigação liderada por […]

equipaNum estudo inovador publicado na edição de 4 de Dezembro da revista científica Cell, uma equipa de investigação liderada por Miguel Soares, do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), descobriu que componentes específicos das bactérias residentes no intestino podem espoletar um mecanismo natural de defesa que protege contra a transmissão de malária.

Ao longo dos últimos anos, a comunidade científica tornou-se mais ciente sobre o facto dos seres humanos viverem numa constante relação simbiótica com a vasta comunidade de bactérias e outros micróbios que residem no nosso intestino.

Esta comunidade de micróbios, designada de microbiota do intestino, não causa necessariamente doenças. Pelo contrário, a microbiota pode influenciar uma variedade de funções fisiológicas necessárias para manter a saúde humana.

Alguns destes micróbios, incluindo estirpes de Escherichia coli (E. coli) que habitam normalmente o intestino humano, expressam na sua superfície moléculas de açúcar, conhecidas por carbohidratos ou glicanos. Estes glicanos podem ser reconhecidos pelo sistema imune humano, resultando na produção de elevados níveis de anticorpos naturais presentes na circulação sanguínea de indivíduos adultos.

Especula-se que os anticorpos naturais direcionados contra moléculas de açúcar expressas pelas bactérias do intestino também possam reconhecer outras moléculas de açúcar semelhantes expressas por agentes patogénicos, isto é, por parasitas que podem provocar doenças em humanos.

Bahtiyar Yilmaz, aluno do programa de Doutoramento do IGC no laboratório de Miguel Soares, descobriu que o parasita Plasmodium, o agente responsável pela malária, expressa uma molécula de açúcar chamada α-gal (alfa-gal) que também é expressa na superfície de uma estirpe de E. coli existente na microbiota do intestino humano.

Através de experiências realizadas em ratos, Bahtiyar Yilmaz descobriu que a expressão de α-gal por estas bactérias, quando residentes no intestino, é suficiente para induzir a produção de anticorpos naturais anti-α-gal que reconhecem a mesma molécula de açúcar na superfície do Plasmodium.

De seguida, Bahtiyar descobriu que estes anticorpos ligam-se ao α-gal na superfície do parasita imediatamente após a sua inoculação na pele pelo mosquito que transmite a malária. Quando isto ocorre, os anticorpos anti-α-gal ativam um mecanismo adicional do sistema imune – o complemento – que origina pequenos furos no Plasmodium matando o parasita antes deste conseguir sair da pele.

O efeito protetor é tal que, quando presentes em altos níveis no momento da picada do mosquito, os anticorpos anti-α-gal conseguem impedir que o parasita transite da pele para a corrente sanguínea e, ao fazê-lo, bloqueiam a transmissão da malária.

Antes destes estudos, já se sabia que apenas uma fração de todos os indivíduos adultos que são confrontados com a mordida de mosquitos em zonas endémicas de malária ficam infectados com o parasita Plasmodium e eventualmente desenvolvem malária.

Isto sustenta a teoria que os adultos podem ter um mecanismo natural de defesa contra a transmissão de malária, que contrasta fortemente com o que se observa em crianças com menos de 3 a 5 anos de idade que são muito mais suscetíveis de contrair malária.

Quando indivíduos de uma zona endémica de malária no Mali foram analisados, a equipa liderada por Miguel Soares, em colaboração com uma equipa liderada por Peter D. Crompton do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (Maryland, EUA) e da University of Sciences, Techniques and Technologies of Bamako (Bamako, Mali), estabeleceu que os indivíduos que apresentam níveis mais baixos de anticorpos anti-α-gal em circulação são também os mais suscetíveis à malária.

Pelo contrário, os indivíduos com níveis mais altos de anticorpos anti-α-gal em circulação são menos suscetíveis a ficar infetados e desenvolver malária. Os investigadores concluíram que a razão pela qual as crianças mais pequenas são tão susceptíveis a contrair malária prende-se provavelmente com o facto de ainda não terem gerado suficientes anticorpos naturais direcionados contra a molécula de açúcar α-gal.

Com o objetivo de ultrapassar esta lacuna, Bahtiyar Yilmaz descobriu que, quando os ratos eram vacinados contra uma molécula sintética de α-gal, que é relativamente fácil de produzir e económica, produziam elevados níveis de anticorpos anti-α-gal altamente protetores contra a transmissão de malária por mosquitos.

Se este “truque” pode ser aplicado em humanos, em particular às crianças mais pequenas, de forma a protegê-las contra a transmissão de malária, é uma questão premente que permanece por responder.

Estima-se que 3,4 mil milhões de pessoas estejam em risco de contrair malária e os dados da OMS de 2012 indicam que cerca de 460 000 crianças africanas morreram antes do seu quinto aniversário. O presente estudo sustenta que se se conseguir induzir nessas crianças a produção de anticorpos contra α-gal podemos reverter estes números tão preocupantes.

Miguel Soares comenta: “Nós observámos que crianças com menos de 3 anos de idade não têm níveis suficientes de anticorpos anti-α-gal, o que pode ser uma das razões para a sua maior suscetibilidade à malária. Uma das maravilhas do mecanismo protetor que descobrimos agora é que pode ser induzido através de um protocolo de vacinação standard, levando à produção de elevados níveis de anticorpos anti-α-gal que se podem ligar e matar o parasita Plasmodium. Se pudermos vacinar estas crianças de tenra idade contra α-gal, muitas vidas podem ser salvas”.

Este estudo foi desenvolvido no IGC em colaboração com o National Institute of Allergy and Infectious Diseases (Maryland; EUA), Instituto de Higiene e Medicina Tropical (Lisboa, Portugal), St Vincent’s Hospital e University of Melbourne (Victoria, Austrália), University of Chicago (Chicago, EUA), e University of Sciences, Techniques and Technologies of Bamako (Bamako, Mali).

Esta investigação foi financiada pela Bill and Melinda Gates Foundation (EUA), pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT, Portugal), e pelo Conselho Europeu de Investigação (European Research Council; ERC).

Referência do artigo: Bahtiyar Yilmaz, Silvia Portugal, Tuan M. Tran, Raffaella Gozzelino, Susana Ramos, Joana Gomes, Ana Regalado, Peter J. Cowan, Anthony J.F. d’Apice, Anita S. Chong, Ogobara K. Doumbo, Boubacar Traore, Peter D. Crompton, Henrique Silveira, and Miguel P. Soares. (2014). Gut Microbiota Elicits a Protective Immune Response against Malaria Transmission. Cell 159. Doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.cell.2014.10.053
Ana Mena (IGC)

 

Autor: Ana Mena | Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

 

Legenda da foto: Equipa de investigação liderada por Miguel Soares no Instituto Gulbenkian de Ciência. Créditos: Roberto Keller (IGC).

 

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