O Errol Flynn que há em nós

A pirataria e o corso sempre foram, desde tempos imemoriais, dos principais flagelos das populações costeiras. Portugal, enquanto feudo à […]

gonçalo-gomes-21A pirataria e o corso sempre foram, desde tempos imemoriais, dos principais flagelos das populações costeiras.

Portugal, enquanto feudo à beira-mar plantado, teve sempre a sua dose de dores de cabeça graças a tais visitas, sendo o Algarve, já então, destino apreciado por tais turistas indesejados.

De tal forma que, reza um mito (que vendo ao mesmo preço que comprei), é daí que vem a rivalidade Faro/Olhão, pois terão sido, no séc. XVI, pescadores olhanenses a guiar incautamente as embarcações do Conde de Essex através dos meandros da Ria Formosa, desde a barra do Lavajo até Faro, onde os ingleses viriam a saquear e incendiar a cidade, levando livros que recentemente foram reclamados. Mas isso são outras histórias.

O seu combate foi, consequentemente, um dos mais empenhados esforços, como testemunham as inúmeras estruturas de defesa, um pouco por toda a costa.

Mas nem atalaias, nem fortes, nem baterias podem defender a costa da versão moderna da pirataria. O ataque, que dantes partia do mar, conhece agora uma inversão da lógica, e vem de dentro. Como?

Simples, atacando o Domínio Público Hídrico (DPH).

Esta figura de ordenamento traduz o entendimento de que as águas públicas, interiores e costeiras, são parte integrante do património do Estado e desempenham um fim de utilidade pública. Como tal, são integradas num regime especial de protecção.

A sua concepção remonta a meados do séc. XIX, tendo sido implementada por decreto do Rei D. Luís I, em 1864.

Originalmente, a preocupação central era garantir o acesso público ao mar, que era visto como um bem de todos, a que todos deviam poder ter acesso, livre e gratuitamente.

No início da década de 70 do Séc. XX, ainda no Antigo Regime, são introduzidas preocupações de natureza ambiental e conservacionista.

Já em pleno Séc. XXI, e com a necessidade de acolher o normativo comunitário, esta legislação sofre nova alteração, em 2005.

Ao longo de todo este período, quem quisesse provar titularidade privada sobre estas zonas, teria que apresentar prova documental, anterior a 1864, de tal pretensão. Portanto, só de boca, não ia lá.

No entanto, e como afinal de contas o verdadeiro e único problema deste País é tudo o que tenha a ver com protecção ambiental e salvaguarda do interesse público, esta grande chatice de ter que provar legalmente que aquilo que dizemos que é nosso, o é realmente, vai levar uma volta.

O Governo, com aclamação da Oposição (que há muito o pedia, provando que nos nossos sacos partidários não há grande variedade de farinha), vem agora “agilizar” e “facilitar” o processo, protelando também o prazo para além do qual, sem prova, as áreas serão, em definitivo e sem possibilidade de contestação, públicas.

Sim, porque bem vistas as coisas, 150 anos é pouco tempo. Em tempos escrevi nestas páginas virtuais: “Seja por irresponsabilidade atávica ou manha geneticamente entranhada, só não tratou quem não quis saber! São quase 5 gerações! O trisavô não sabia, o bisavô não acreditou, o avô não quis saber, o pai achou que já não valia a pena, e agora o filho não teve tempo?”. Tenho agora que acrescentar que o neto não encontra o papel…

Está-se então a abrir, lenta mas progressivamente, caminho para a cedência ao abuso e para a prova arbitrária de titularidade do DPH, privatizando a linha costeira e as margens dos rios. O abuso, é bem verdade, está um pouco por todo o lado (e bem à vista de todos, como o recente episódio na Culatra demonstrou), e não é a lei que o impede ou pune os responsáveis. Mas isso, ao invés de servir de desculpa para abandalhar ainda mais, devia ser incentivo para o reforço dos meios, recursos e autoridade dos que supostamente devem aplicar as regras…

Na lápide do DPH ler-se-á então: “Instituído em monarquia, perpetuado em ditadura e esfrangalhado em democracia republicana, livre e igualitária”. Irónico, mas sintomático.

Pior ainda é se pensarmos que o Domínio Público Hídrico, para além de concepção política é, hoje em dia, um “amortecedor” contra o cenário de alterações climáticas. Isto porque as envolventes directas de massas ou cursos de águas são dos locais onde os fenómenos extremos batem com mais força. Importa portanto evitar a ocupação dessa verdadeira linha de fogo.

Há obviamente os que se alegram com estas notícias, pois até vêem solução para a “legalização” das suas casas, ou segundas casitas ilegais de férias, e/ou de aluguer clandestino a preços exorbitantes no Verão. Mas para esses, atenção!

No dia em que a costa tiver uma etiqueta em branco, os pequenos deixam de ter lugar, porque será a profundidade e recheio dos bolsos a ditar as regras. A bem, ou a mal. Quando se é arraçado de caixa registadora, importa pensar que tudo o que tem preço pode ser comprado, por vezes em saldos ou liquidação total. E aí, sendo tudo uma questão de números, argumentações apalhaçadas a puxar ao sentimentalismo do coitadinho, ou à suposta história familiar, são para esquecer. Produtos comercializam-se, ponto final.

Abeiramo-nos portanto do mesmo problema que assola os nossos concidadãos gregos: a privatização selvática da costa. A Grécia, nisto como em tantas outras coisas, é apenas uma nossa caricatura exagerada.

A nossa maior pobreza não é material, mas sim de espírito. Vai daí embarcamos no mote pirata de que, idos os anéis, é tempo de cortar também os dedos.

Juntando as peças, acaba por bater certo.

Seja por influência do intrépido Errol Flynn ao comando dos seus navios piratas, ou do extravagante Jack Sparrow, a verdade é que a pirataria é capaz de ser o que melhor nos define.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 

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