Comigo, o Miró jogava sempre a ponta-de-lança

É verdade. Para mim, tudo o que venha da cantera do Barça é mais do que garantido. Vai daí, essa […]

É verdade. Para mim, tudo o que venha da cantera do Barça é mais do que garantido. Vai daí, essa jovem promessa que anda nas bocas do Mundo, o Miró, tinha a titularidade garantida numa equipa em que eu mandasse.

Parvoíce? Talvez. Eu prefiro chamar-lhe liberdade criativa.

O blasfemo exercício é desculpável, tendo em conta que, não faz muito tempo, pouca gente sabia quem foi Miró, ou a área em que se destacou. E mesmo agora, que o falecido ascendeu à condição de rock-star cultural, quem conhece a obra deste catalão? Ou sabe quais são os tais 85 quadros que estão prestes a ser leiloados? Mesmo os que clamam em intelectual agonia pela sua exibição num qualquer Museu, fazem por acaso intenções de despender 5 minutos que sejam para ir até essa exposição?

Desde já faço uma declaração de interesses: não sou grande fã da obra de Miró. Não sendo profundo conhecedor, mas tendo tido oportunidade e curiosidade de estudar alguma coisa, nas saudosas cadeiras de História de Arte, nunca fiquei cativado por aí além. Naturalmente há obras apelativas, mas prefiro, por exemplo, o trabalho do seu alucinadíssimo e excêntrico conterrâneo e contemporâneo Dali. São gostos…

Fará isto de mim um calhau, sem aspirações a mergulhar no boião da maionese cultural em que vivem as intelectualidades nacionais? Provavelmente, tendo em conta a euforia Mirómana do Portugal contemporâneo.

Mas a mim fere-me muito mais a menina dos olhos ver o desconhecimento e esquecimento a que são votados grandes nomes da pintura nacional (Amadeo de Souza Cardoso ou Almada Negreiros, por exemplo, contemporâneos de Miró), do que o destino final de um espólio (ou pilhagem?) resultante de uma das maiores falcatruas a que este País assistiu. Não é que não lhe reconheça a importância, mas acho que há outras prioridades,

Até porque, ao contrário do que algumas luminárias parecem querer fazer-nos crer, não é com isso que saldamos o défice. Não tarda muito, importamos as ossadas de Miró para arrumar no Panteão (outra moda), como o homem que, postumamente, pincelou a crise de cor-de-rosa.

Prioritário parece-me ser a preservação do nosso património (natural, paisagístico, arquitectónico, etnográfico, vernacular, imaterial) e a sua dinamização e revitalização, já que muito dele é negligenciado e, pior que tudo, ignorado por largas franjas da população. É esta a matéria de que se faz a nossa identidade cultural, e é desta que não cuidamos.

O resto é uma interessante cortina de fumo que nos entretém com questões acessórias, livrando-nos do drama que é ter que encarar a realidade do País, aquele que os nossos concidadãos europeus consideram, por exemplo, um paraíso para a corrupção.

Mas quem nos tira um bom paradoxo, tira-nos tudo. Não é à toa que conseguimos tornar Fernando Pessoa um apátrida, prostituindo a sua Pátria, a Língua Portuguesa, através de um suposto acordo ortográfico, mas vemos nos surreais quadros de Miró a salvação cultural da Nação.

Agora que penso nisso, se calhar em poucos lugares como aqui o surrealismo assenta tão bem.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

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