Professor, músico, ator, poeta, algarvio adotivo e «transitoriamente Reitor»

«Sou o António Branco, 52 anos, nascido em Angola, filho de uma professora e de um jornalista, filho adotivo do […]

«Sou o António Branco, 52 anos, nascido em Angola, filho de uma professora e de um jornalista, filho adotivo do Algarve. Transitoriamente reitor».

O novo reitor da Universidade do Algarve, que tomou posse esta quarta-feira, é isto e muito mais. Um homem de letras, o primeiro a ocupar o cargo, que dedicou boa parte do seu discurso às questões sociais, às dificuldades financeiras internas e externas, aos professores e estudantes, mas também ao pessoal não docente, cujo trabalho será «menos visível», mas nem por isso menos importante.

António Branco aproveitou a sua primeira intervenção como Reitor para lançar a reflexão sobre muitos assuntos. A crise que atravessamos, as dificuldades vividas pelos portugueses, o papel do Governo, a qualidade pedagógica e a necessidade de dar novo impulso à academia foram apenas alguns dos temas abordados, num texto eloquente, onde se notou bem a veia artística do novo líder da UAlg.

A expressão artística é, de resto, algo que tem acompanhado António Branco, ao longo da sua vida. A música, como intérprete e compositor, a escrita, com um livro de poesia publicado e o teatro são paixões alimentou desde cedo.

Na música, além de vários anos de formação musical, participou por duas vezes no Festival RTP da Canção, em 1980 e 81, com músicas do qual foi coautor e compositor. Esta veia musical pode muito bem ter sido herdada, já que o novo reitor da UAlg é sobrinho do cantautor José Mário Branco, que marcou presença na sua Tomada de Posse.

No teatro, é ator, encenador, dramaturgo e até foi fundador de uma companhia teatral lisboeta, o grupo profissional Teatro do Mundo, em 1979.

Tudo isto se liga a um vasto currículo profissional, fruto de uma já longa carreira académica, feita em grande parte na Universidade do Algarve.

Na Tomada de Posse de ontem, onde o Ministro da Educação se fez representar pelo secretário de Estado do Ensino Superior José Gomes Ferreira, o Governo e as políticas de austeridade foram alvo de muitas críticas, da parte dos sucessivos oradores, nomeadamente o Reitor cessante João Guerreiro, o presidente do Conselho Geral Luís Magalhães e a presidente da Associação Académica Filipa da Silva.

O novo reitor não foi exceção e não esperou muito para “tocar na ferida”. Logo no início do seu discurso, falou do sobre «o sofrimento daqueles a quem a crise mais atinge e sobre o contraste entre a situação desses tantos e a daqueles poucos a quem a crise tem beneficiado tanto». Fez ainda referência «à desumanidade que é tratar friamente os vencimentos dos funcionários públicos como “fator de despesismo do Estado”».

António Branco garantiu que não ficará indiferente ao peso que o corte de 23 euros no salário terá no orçamento de muitos funcionários públicos que têm um «parco rendimento de 675 euros». «Lembrei-me do que me confessou há dias uma funcionária desta casa: que tinha metido baixa, porque não tinha dinheiro para o transporte para vir trabalhar».

António Branco também se referiu ao «medo», esse «monstro paralisador da criação individual e coletiva». «O medo tem de ser banido da academia com determinação, porque este é um lugar especialmente criado para o Homem se entregar ao exercício da razão – e a razão, a para do conhecimento e da vivência mais plena da Democracia que le proporciona, é a nossa melhor arma contra o medo», disse.

Também houve palavras para «os homens e mulheres que se dedicam à instituição como se estivessem a cuidar da própria casa», a quem gosta de chamar «os cuidadores», começando pelos «que são menos visíveis». Ou seja, «os que mudam uma lâmpada fundida, reparam uma torneira que pinga, limpam gabinetes depois de nós sairmos ou antes de nós chegarmos», entre muitos outros.

Para finalizar, António Branco lembrou as palavras da jovem paquistanesa vítima da repressão dos talibã Malala Yousafzai, numa intervenção na ONU. «No dia 9 de outubro de 2012, os talibãs atiraram sobre mim, atingindo-me no lado esquerdo da testa. E também atiraram sobre os meus amigos. Acharam que a bala nos silenciaria, mas falharam. E do silêncio emergiram milhares de vozes. Peguemos, peguemos nos nossos livros e nas nossas canetas. Eles são a nossa arma mais poderosa: uma criança, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo. A educação é a única solução. A educação em primeiro lugar».

 

Veja as fotografias da Tomada de Posse na nossa página do Facebook.

 

Discurso da tomada de posse António Branco (na íntegra):

UALG, 18 de dezembro de 2013

Interroguei-me muito sobre o que dizer neste primeiro uso oficial da palavra enquanto reitor, perante a Academia e os seus convidados, numa cerimónia em que celebramos os 34 anos da Universidade do Algarve e 21 anos após a conclusão da sua fusão com o Instituto Politécnico de Faro.

Na primeira fase dessa reflexão, passei pela tentativa de identificar as expectativas geradas pela minha eleição a 27 de novembro passado, umas baseadas na desconfiança, outras na confiança e outras ainda no desconhecimento: o que esperariam que eu dissesse todos aqueles que, legitimamente, me consideraram, dos três candidatos, o menos adequado a este cargo? E aqueles que, com a mesma legitimidade, me apoiaram em público ou em privado, explícita ou implicitamente? E os muitos outros que não tinham ou ainda não têm opinião sobre isso? E o que esperariam os estudantes, os professores, os funcionários que eu viesse dizer? Que palavras estariam à espera de ouvir o reitor e a equipa reitoral cessantes, os restantes membros da nova equipa reitoral que hoje tomou posse a meu lado, os titulares dos vários órgãos académicos, os dirigentes dos serviços, as autoridades regionais e nacionais, os representantes da sociedade civil, os membros da comunicação social, os amigos?

Em primeiro lugar, pensei que vos queria falar sobre o sofrimento de todos aqueles a quem a crise mais atinge e sobre o contraste entre a situação desses tantos e a daqueles poucos a quem a mesma crise tem beneficiado tanto: porque enquanto uns empobrecem, encontrando no fundo desse imprevisto empobrecimento uma vergonha e uma impotência que não conheciam antes, outros não têm vergonha de enriquecer excessivamente e de se tornarem mais poderosos. E pensei que vos queria falar sobre a desumanidade que é tratar friamente os vencimentos dos funcionários públicos como «fator de despesismo do Estado», assim contribuindo para lançar uma espécie de maldição e provocar um sentimento de culpa num grupo social em que, como em muitos outros, encontramos o melhor e o pior, mas que tem sido capaz de se modernizar, de se por cada vez mais ao serviço dos cidadãos, de se repensar e de sobreviver às políticas mais duras de que há memória no domínio das medidas que visam o chamado «equilíbrio das contas públicas». E dizer-vos que não nos pode ser indiferente, na Universidade do Algarve, o peso que, a partir de 1 de janeiro de 2014, terão no orçamento familiar de muitos funcionários públicos os 23 euros e 63 cêntimos de redução do seu parco vencimento de 675 euros, para referir apenas o limite inferior da nova tabela de cortes que a Lei do Orçamento de Estado recentemente aprovada obrigará todos os organismos públicos a aplicar.

E que na apreciação que fazemos do que está a acontecer, não podemos contentar-nos com o que alguns números obscurecem: 3,5% de corte no vencimento parece tão pouco, mas quando traduzimos essa percentagem em 23 euros e 63 cêntimos, damos conta de outra realidade, essa sim concreta, que nos fala do pão, do leite, da carne, da fruta, dos medicamentos, da eletricidade, enfim, dos muitos produtos básicos de subsistência que essas famílias deixarão de poder adquirir. E por isso vos digo que não nos podem ser alheias as graves carências em que já vivem muitos estudantes e funcionários da Universidade. E recordei-me de uma frase recente do Professor Adriano Moreira: «A fome não é um direito constitucional». E lembrei-me do que me confessou há dias uma funcionária desta casa: que tinha metido baixa porque não tinha dinheiro para o transporte para vir trabalhar.

Depois pensei que vos queria falar da alienação. A alienação é o estado daquele que não é senhor de si e que pode assumir muitas formas: a do alheamento, a da distração, a da sonolência, a do isolamento, a da fuga. Causada umas vezes pelo egoísmo e pela indiferença, outras pela necessidade de anestesiar uma dor insuportável, outras, ainda, pela sensação de impotência, deveríamos ser capazes de a expulsar de dentro dos muros da Academia, porque a nossa razão de existir é em tudo contrária à escravidão do espírito e da vida a que a alienação nos conduz quando não lhe resistimos.

A voz da alienação exprime-se dissimuladamente através de frases que proferimos todos os dias: «Não é nada comigo» ou «Já bem me bastam os meus problemas» ou «Ah, sim, já ouvi dizer que andam a discutir isso, mas é lá uma coisa deles, ELES é que decidem» ou «Contra isso não posso fazer nada». E serve de justificação para nos escondermos quando deveríamos aparecer, para nos silenciarmos quando deveríamos fazer-nos ouvir, para nos paralisarmos quando deveríamos pôr-nos em movimento, abrindo espaço a que outros decidam por nós, enquanto nós nos retiramos descansada ou sofridamente para o campo da servidão cujo único resultado possível é o de nos tornarmos servos da nossa vida e da vida dos outros, em vez de sermos senhores. Recordei-me, então, de uns versos de Antero de Quental: «Não disputeis, curvado o corpo todo, / As migalhas da mesa do banquete; / Erguei-vos! E tomai lugar à mesa…».

A seguir, pensei que vos queria falar do medo, desse monstro paralisador da criação individual e coletiva. Do medo do passado ou do medo do futuro, do medo do chefe, do medo de não ser capaz, do medo de decidir, do medo de perder. Do medo objetivo, provocado pela evidência de perigos reais, e do medo subjetivo, criado pela imaginação mais sombria.

Aos medos há que contrapor a prudência, que não é temerosa mas sensata, que não se assusta mas vigia, que sabe que ninguém se protege ficando sozinho. Os instigadores do medo, esses hábeis manipuladores cuja força se alimenta da fraqueza do nosso próprio medo e que contam com os nossos medos objetivos e subjetivos para fazer crescer em nós a desistência, sabem que o medo só cresce na solidão e trabalham consciente e competentemente para nos isolar. E recordei, não conseguindo evitar um sorriso, a reprimenda que Dom Quixote dirige ao seu escudeiro Sancho Pança e que cito a partir da tradução de Aquilino Ribeiro: «Como hás-de ouvir e ver direito se o medo te põe aranheiras nos olhos e nos ouvidos?! Um dos efeitos do medo é turvar os sentidos e fazer com que as coisas pareçam muito outras do que são na realidade.»

Tem razão Dom Quixote: o medo tem de ser banido da Academia com determinação, porque este é um lugar especialmente criado para o Homem se entregar ao exercício da Razão // e a Razão (a par do Conhecimento e da vivência mais plena da Democracia que ele proporciona), a Razão é a nossa melhor arma contra o medo. Mas falar do medo também ajuda a fortalecê-lo – e por isso decidi ser breve neste ponto.

Posteriormente, tive vontade de vos falar de palavras que corremos o risco de perder, por desuso ou por abuso: «transparência», «participação», «cidadania», «democracia», «justiça», «solidariedade», «civilização», «ética», «confiança», entre muitas outras; e de expressões como «estado de direito», «escrúpulo moral», «serviço público», «estado social». E de outras palavras e expressões que invadiram o discurso público e que, sempre que não as interrogamos seriamente, nos fazem perder o sentido do real, das pessoas e da vida, transformando-os em pura abstração: «desenvolvimento sustentável», «défice estrutural», «emprego sazonal», «desafio societal», «crise», «ajustamento», «reforma», «utente», «problema emergente», «parceiro estratégico», «requalificação». Quem tanto ama as palavras, como eu, sabe como elas podem ser as nossas piores inimigas, se servirem para mascarar ou para nada dizer dizendo ou para instituir mecanismos de poder que confirmam os baixos desempenhos de literacia da população, em suma, para excluir. Como diz Sophia de Mello Breyner: «Com fúria e raiva acuso o demagogo / Que se promove à sombra da palavra / E da palavra faz poder e jogo / E transforma as palavras em moeda / Como se fez com o trigo e com a terra.»

E convosco partilho também este trecho de Italo Calvino:

«Às vezes parece-me que uma epidemia pestífera atingiu a humanidade na faculdade que mais a caracteriza, ou seja, a linguagem, uma peste da linguagem que se manifesta como perda da força cognitiva e de imediatismo, como um automatismo com a tendência para nivelar a expressão nas fórmulas mais genéricas, anónimas e abstractas, para apagar toda a centelha que crepite do encontro das palavras com novas circunstâncias.»

Não: não proporei a expulsão dessas palavras e dessas expressões da Academia. Porque todas as palavras são necessárias a quem aprende e a quem ensina e porque as palavras são nossas, são importantes e são muito antigas. Para além disso, um profissional da educação sabe que uma das suas mais nobres missões, nas questões da linguagem e das ideias, é a de encontrar, na relação pedagógica que estabelece com os alunos, o difícil equilíbrio entre o elitismo autista de antanho e a massificação empobrecedora da atualidade.

Depois, pensei: tenho de falar do plano estratégico, para cuja definição começarei a trabalhar imediatamente, das medidas de curto, médio e longo prazo que pretendo dinamizar, da reorganização da oferta formativa, da internacionalização, da convergência temática na investigação, da transferência de conhecimento e de tecnologia para a atividade económica e da ligação orgânica à região, da delegação de competências nos vários níveis dirigentes, das mudanças que gostaria de ver acontecer na administração da universidade, do aprimoramento da legibilidade do orçamento e da situação financeira em que nos encontramos, da necessidade de conservar edifícios e equipamentos, da imprescindibilidade de alargar o recrutamento de estudantes, da melhoria da nossa imagem externa, das relações (que queremos frutuosas) com o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas e com o Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos – e, claro, também, das dúvidas que todos os responsáveis das universidades e dos institutos politécnicos têm hoje sobre o alcance real do exercício das várias autonomias consagradas na Constituição e na Lei. Sim, tudo isso é certamente importante para um reitor apresentar e explicar no seu primeiro discurso. Mas em outubro escrevi um texto longo, a que chamei Programa de Ação, e que se tornou público há menos de um mês. E que foi amplamente discutido em sessões de esclarecimento. E que foi submetido ao escrutínio do Conselho Geral na audição pública de 26 de novembro.

Não tenho nada de novo a acrescentar, a não ser que, não se tratando de um mero instrumento de propaganda ou de marketing eleitoral, é útil para todos aqueles que queiram conhecer o pensamento do reitor sobre a Academia e servirá de guião para a ação da equipa reitoral hoje empossada e para todas as propostas que ela fará à comunidade académica, em geral, e ao Conselho Geral, em particular. Já falei demais sobre ele. Agora é tempo de Despertar, de Repensar e de Fazer – e já não é o tempo da palavra programática do reitor, mas o tempo da Academia.

Seguidamente, surgiu-me outro tema, que se desdobra em dois: o meu amor à Universidade do Algarve e a força da Academia. Amor grato: porque esta Universidade me acolheu em 1991, como assistente convidado, e me ajudou a crescer enquanto professor, investigador e cidadão. Aqui fiz o doutoramento em Literatura, aqui tenho ensinado e investigado, aqui fiz a agregação em Artes. Aqui tenho encontrado novos mestres e novos discípulos, aqui me tenho interrogado sobre a minha humanidade e a dos outros, aqui tenho pensado, aqui tenho ajudado a pensar. Aqui me foram escolhendo para funções em que pude aprender muito sobre gestão e orçamentos e leis e regulamentos e sobre como não deixar que tudo isso faça esquecer o mais importante.

Aqui conheci homens e mulheres sábios e comprometidos, verdadeiros exemplos da ética académica que me formou, homens e mulheres que se dedicam à instituição como se estivessem a cuidar da própria casa. Os cuidadores, como gosto de lhes chamar. Desculpar-me-ão que comece hoje pelos menos visíveis: homens e mulheres que mudam uma lâmpada fundida, reparam uma torneira que pinga, limpam gabinetes depois de todos sairmos ou antes de todos chegarmos, imprimem uma brochura, preparam refeições nas cozinhas das cantinas, organizam e carimbam e arquivam documentos, agendam reuniões ou fazem uma ligação telefónica, preparam dados, verificam faturas e recibos, inventariam equipamentos, fotocopiam ou digitalizam, enviam convocatórias, preparam e mantêm os computadores, atendem pessoas e resolvem-lhes os problemas, conduzem e cuidam de viaturas; mulheres e homens que tudo fazem para garantir o sucesso de cerimónias como esta, que mandam convites e recebem os convidados, reservam trajes, vão à procura das cadeiras necessárias e as colocam no palco, trabalham ao fim de semana para que tudo fique pronto na data combinada; mulheres e homens que compaginam o seu horário de trabalho com as necessidades da instituição, muitas vezes sacrificando a sua vida pessoal. Só serão menos visíveis se não os virmos. Mas eles estão cá, porque, como todos sabemos, quando alguma coisa aparece feita foi porque alguém a fez.

Falo-vos agora da nossa força. No início desta cerimónia, puderam assistir ao desfile do cortejo académico ao som de um coro que cantava em latim as seguintes palavras: Vivat Academia! Vivant professores! Vivat membrum quodlibet! Vivant membra quaelibet! (Viva a Academia! Vivam os professores! Viva cada estudante! Vivam todos os estudantes!). Muitos não gostam do cortejo académico, por reconhecerem nele traços da arrogância e do autoritarismo próprios da escolástica medieval que a ditadura tão bem aproveitou e preservou. Outros, por só verem nele uma espécie de exibição de um saber anquilosado da Academia. É verdade que tudo isso pode ser visto quando se assiste à passagem do cortejo académico. Contudo, não deixando de ver tudo isso (porque a História é uma das minhas companheiras), gostaria agora de chamar a atenção para outros significados importantes do cortejo académico. Um cortejo é uma marcha solene organizada. Desse modo, o cortejo ritualiza a dimensão da Academia em que ela é uma resposta ao Caos, ao mesmo tempo que abre no espaço quotidiano um tempo não mundano. Este outro tempo é o tempo de Jano, deus romano cuja cabeça é formada por duas faces: uma que não tira os olhos do passado distante e outra com os olhos pregados no futuro longínquo. O cortejo recorda-nos a todos que, apesar de celebrarmos apenas 34 anos da Universidade do Algarve, o que aqui fazemos é muito antigo, vem de muito longe e vai para muito longe. O cortejo, em que os professores vêm dar testemunho à sociedade da sua missão principal, lembra-nos que somos apenas um momento num continuum histórico muito antigo que sobreviverá muito para além de nós.

Começou naquele dia perdido nos tempos em que pela primeira vez um ser humano percebeu que era preciso passar à geração seguinte a experiência e o saber que «o labor, o trabalho e a ação», como diria Hannah Arendt, lhe tinham proporcionado. Nesse dia longínquo, há dezenas de milhares de anos, esse ser humano deu início a uma das atividades mais belas e mais nobres da Humanidade: a Educação.

Tudo o que fazemos e tudo o que pensamos, na Academia, encontra o seu sentido na aula, palavra que em grego antigo queria dizer «espaço livre». Somos uma Escola, no sentido etimológico da palavra: um espaço vital em que se pratica a experiência ativa e intensa da discussão entre professor e alunos, livres de pressões externas.

Planificamos, investigamos, orçamentamos, inventariamos, faturamos, carimbamos, arquivamos, imprimimos, autorizamos, limpamos, arrumamos, comemoramos em nome disso e para isso: para que o encontro entre professores e alunos aconteça nas melhores condições possíveis. Por isso são os estudantes que cantam à passagem dos professores do cortejo: cantam a alegria desse encontro. Por isso são os estudantes o núcleo, e nós, todos nós, somos os cuidadores.

E de cada vez que um estudante leva a sério a sua missão de aprender – que quer dizer perguntar, perguntar sempre, não se conformar com a ignorância, não desistir de querer compreender –; de cada vez que um professor leva a sério a sua missão de ensinar – que também quer dizer perguntar, para fazer surgir perguntas e mais perguntas e mais perguntas, não se conformar com a falta de conhecimentos dos seus alunos, não desistir de lhes dar os meios para eles compreenderem cada vez mais –, de cada vez que isso acontece, é gerada uma força que nenhuma outra consegue derrotar: a força do compromisso de ensinar que assumimos com a sociedade. Por isso, é pouco dizer que preparamos os jovens para o mercado de trabalho. Sim, fazemo-lo, mas é muito mais do que isso. Por isso, é pouco dizer que transmitimos técnicas e conhecimentos. Sim, fazemo-lo, mas é muito mais do que isso.

Não é por acaso que a aula é um dos espaços mais perigosos para os poderes autoritários: porque a força da Educação, a força que resulta de os homens se interrogarem, a força que resulta de os homens quererem saber mais, quererem compreender melhor, quererem, em suma, tomar conta da sua vida, essa força é assustadoramente poderosa. É o contrário do que diz a cantiga: «para ser escravo é preciso estudar», pois um jovem não estuda apenas para arranjar emprego, mas sim para se tornar mais livre. Isto mesmo descobriu Malala Yousafzai, a jovem paquistanesa de dezasseis anos que proferiu as seguintes palavras na ONU:

«No dia 9 de outubro de 2012, os talibãs atiraram sobre mim, atingindo-me no lado esquerdo da testa. E também atiraram sobre os meus amigos. Acharam que a bala nos silenciaria, mas falharam. E do silêncio emergiram milhares de vozes. Peguemos, peguemos nos nossos livros e nas nossas canetas. Eles são a nossa arma mais poderosa: uma criança, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo. A educação é a única solução. A educação em primeiro lugar.»

Sou o António Branco, 52 anos, nascido em Angola, filho de uma professora e de um jornalista, filho adotivo do Algarve, professor. Transitoriamente reitor. Contai com isto de mim, para a UALG e para o resto.

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