Palavras, leva-as o fogo

Neste fim-de-semana decorreu uma massiva campanha de apoio aos bombeiros de Portugal e suas corporações, apadrinhada pelo canal público de […]

Neste fim-de-semana decorreu uma massiva campanha de apoio aos bombeiros de Portugal e suas corporações, apadrinhada pelo canal público de televisão.

Esta campanha pretendeu não apenas angariar apoio financeiro, através de chamadas telefónicas e donativos, para as corporações de bombeiros, mas também chamar a atenção para o que é ser bombeiro em Portugal, e do que é combater fogos florestais, uma das mais dramáticas intervenções a que estes homens e mulheres são chamados, de entre muitas outras ao longo de todo o ano.

Pese embora a nobreza da intenção, o seu cruzamento com a realidade gera um sentimento que raia a náusea, tal não é a hipocrisia de tudo aquilo a que assistimos.

Antes de mais, confesso que sou avesso a caridades. Prefiro a solidariedade.
Vai daí, não gastei 0,738 € numa chamada que, apesar da promessa de reversão integral para a Liga dos Bombeiros, é alvo de cobrança do IVA por parte do Estado (muito solidário, sem dúvida) e da qual o operador retira a sua comissão, num gesto de igual magnanimidade.

Mesmo que depois o “devolva” à causa, esse dinheiro, que supostamente não seria seu, é já contabilizado como mecenato (dedutível nos seus impostos), à custa da boa intenção da pessoa que ligou (que não deduz coisa nenhuma).

Explorar comercialmente a boa vontade das pessoas, não sei porquê, não me parece nada bem.

Contas feitas, não sei dizer quanto é que entra efectivamente no bolo que é entregue às corporações… mas aceito, e agradeço, ser esclarecido.

Também não fui, benemérito, dar a esmola de 1 € ao quartel de bombeiros mais próximo, caridosa sugestão apresentada há tempos.

Prefiro antes ser sócio da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da minha área de residência, e recomendo o mesmo a toda a gente. Prefiro o esforço solidário ao descarte de consciência caridoso.

Nem todos podem suportar uma quota? Concordo, mas se calhar também passa, e muito, por opções, e troco o valor equivalente a alguma bugiganga, meia dúzia de maços de tabaco ou uma passeata, pela quota, enquadrando este investimento nas finanças pessoais. Além do mais, há várias quotizações, adaptadas às diferentes bolsas, valendo a pena investigar o assunto.

E mesmo quem, infelizmente, não possa de todo associar-se, à partida contribui, através dos absurdos impostos que lhe são diariamente cobrados, para a resolução da outra parte do problema, que é o desordenamento do território, com destaque, neste caso, para a dita floresta.

Sim, porque grande parte da adversidade que se depara aos bombeiros no combate aos incêndios decorre do caos que grassa nas nossas paisagens.

Há causas para todos os gostos.

Desde logo, é muito fácil apontar o dedo à mão criminosa. Mais difícil é saber quem lhe encomendou o serviço, quem lhe deu o depósito com a gasolina e a bomba incendiária. Ou serão todos maluquinhos de aldeia? E a mão negligente, que acaba por ser tão criminosa como a consciente? A Justiça é cega, mas não devia ser assim tanto…

De qualquer forma, isso é apenas a ignição. A seguir à deflagração, o fogo precisa de combustível. Que está lá, em abundância, numa paisagem cada vez mais desumanizada e menos trabalhada, presa fácil para interesses que se organizam para implantação de culturas desastrosas a nível ecológico e de propagação de incêndios (quando traços marcadamente mediterrâneos da nossa paisagem tornam o fogo visita natural e habitual), ou de interesses que não se organizam nem se deixam organizar, e a mantêm refém de um abandono e de um cadastro frequentemente desconhecido que, abrigado no sacrossanto direito de propriedade, imobiliza tudo e todos, em guerras de herdeiros ou proprietários que nem sonham onde ficam as suas terras e/ou que delas nada querem, sabem ou podem fazer.

E é esse o pior fogo ao qual são atirados os homens e mulheres dos bombeiros. São carne para canhão num jogo de interesses que deturpa o seu lema de “Vida por Vida”.

Portanto, confesso que, enquanto pequena parte do Estado, que somos todos nós, preferia ver a Administração definir estratégias coerentes e tomar medidas mais firmes e activas na gestão do território (afinal é para isso que lhe pagamos) do que propriamente disponibilizar o canal público para espectáculos de caridade.

Preferia ver coragem política (sem partidarites) para um trabalho legislativo e social de fundo, no sentido de dotar a Administração da capacidade para intervir e desbloquear impasses de propriedade que impossibilitam, pelo país fora, qualquer esforço de organização ou exploração dos recursos florestais. E depois, que seja capaz de viabilizar e gerir, numa óptica de perenidade, dinâmicas económicas e sociais que revitalizem as paisagens.

Preferia também ver a coragem necessária para enquadrar determinados interesses, como a celulose e as suas mascotes (espécies florestais de crescimento rápido), numa estratégia integrada para a mata nacional, onde forçosamente a matriz deve ser o uso múltiplo, assente nas espécies autóctones e em actividades de exploração que permitam a fixação de populações.

Curiosamente, e contra todos os avisos, o que se verificou recentemente foi a concessão de carta de alforria às acções de florestação com espécies de crescimento rápido…

O endurecimento da moldura penal para incendiários e negligentes é, sem dúvida, fundamental, assim como seria também interessante investigar os interesses económicos que, por sistemática coincidência, gravitam em torno dos incêndios.

Ou somos todos assim tão ingénuos?

No fundo preferia uma abordagem estrutural e estruturante, e não a exploração de um sentimento conjuntural. Ou seja, um pouco mais de massa crítica e exigência, e menos de coração. O que nos sobra em generosidade, falta-nos em cabeça.

Um exemplo? Basta ver que a tal emissão decorreu no Pavilhão Atlântico, hoje rebaptizado com o nome de um produto da companhia que o recebeu de mão beijada, numa jogada legal, mas imoral.

Tivesse este equipamento, com a forte marca que tinha associada, sido vendido a um preço real (que ao menos cobrisse os custos de construção, e não apenas um terço), e não num negócio de amigo, e logo aqui arranjava-se dezenas de milhões de euros que poderiam, por exemplo, ser investidos no ordenamento florestal e na formação e equipamento dos bombeiros. Mas alguém se inquietou com isso?

Aos bombeiros, em grande parte voluntários, importa assim, tanto quanto agradecer, pedir desculpa. Pedir desculpa por, ano após ano, deixarmos que nada de significativo seja feito e que nada mude, a não ser para pior.

O nosso conformismo silencioso é cúmplice do fogo que os mata. E não há trocos que lavem essa culpa.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 

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