O estranho caso do rapto do Algarve

Em final de silly season, eis que chega alguma animação, eventualmente para compensar a tristeza que se avizinha, com o […]

Em final de silly season, eis que chega alguma animação, eventualmente para compensar a tristeza que se avizinha, com o aproximar do adeus às “sunsets”, “boat parties” e outras “typicalities” que o Verão nos trouxe.

Para variar, desta vez sob a forma de um rapto à escala regional.

É verdade, nuestros hermanos, concretamente os nossos vizinhos andaluzes, decidiram tomar de assalto, sem pedir autorização, o nome do Algarve para promover as suas costas.

Definitivamente, a família não se escolhe…

Vai daí, os agentes responsáveis pelo turismo cá da região vieram a público, e muito bem, insurgir-se contra a apropriação indevida da “marca” Algarve, para promoção de um outro local, na margem errada do Guadiana.

No entanto, parece-me que estamos perante um caso de confusão a pedido. Isto porque nas últimas décadas o Algarve tem, na sua cruzada turística, desbaratado a sua paisagem, com sistemáticas e repetidas agressões, alegremente destruindo tudo aquilo que o tornava verdadeiramente único.

De forma quase autista, foi importado e decalcado, à força, um modelo territorial de betonização e massificação da ocupação da costa (e mais além), temperado com relvados polvilhados por bandeirinhas e palmeiras, enquanto o interior e as suas actividades tradicionais eram votadas ao esquecimento e ao abandono.

E não deixa de ser curioso que muita da inspiração tenha sido retirada das inúmeras piolheiras que a costa Sul de Espanha durante tantos anos acarinhou e agora deita abaixo a dinamite, aproveitando para alojar alguns dos autarcas responsáveis em resorts penitenciários.

A troca de meia dúzia de patacos fáceis, o Algarve vendeu a sua identidade. Preferiu ser um postal a juntar a tantos outros, em vez de desenvolver um modelo adaptado às suas especificidades paisagísticas e culturais, afirmando-se como região única e não como produto.

Não há grandes dúvidas de que foi, e ainda é, bom para alguns bolsos. Alguns, mas não muitos. É por isso que a terra prometida, do “Algarvian Dream”, descambou no pesadelo do recorde de desemprego. O tecido económico criado por esta ilusão, para alem de frágil, é desequilibrado em nome de uma monocultura insustentável e totalmente vulnerável a factores internamente incontroláveis.

Mas pior é constatar que, ao contrário do que muitos possam pensar, a loucura não conheceu o seu fim com a explosão da crise, tantas vezes anunciada. Basta ver o que está a ser cozinhado para as margens da Lagoa dos Salgados, e temos a prova de que não aprendemos nada, e que não há quem nos defenda…

Ora os nossos vizinhos, espertalhões como são, apenas se limitam a capitalizar sobre a confusão em torno do que é, verdade seja dita, confundível – mas não igual, importa lembrar.

Sem a afirmação clara e inequívoca de uma identidade forte, que só pode advir dos traços característicos da região, há lugar ao equívoco. Enquanto a promoção da “marca” Algarve não assentar verdadeiramente nos traços característicos da sua paisagem (valores e recursos naturais – sem ser em ridículos canteiros –, aptidões territoriais, valores culturais e patrimoniais, etc.), estes episódios suceder-se-ão, num mercado turístico cada vez mais agressivo.

Os andaluzes colam-se ao Algarve? Vinguemo-nos e coloquemos o Mortadelo y Filemón nos nossos cartazes. Ou então, se quisermos ser mesmo vingativos e cruéis, exportemos a Fanny, o José Castelo Branco e os membros da nossa Assembleia da República para Espanha, como castigo.

No entanto, nada disso não resolve a origem do problema. E essa é a afirmação, para lá de qualquer dúvida, do corridinho em relação às sevilhanas, ou quaisquer outros ritmos.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 

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