O meu jardim

Na Turquia vivem-se dias agitados. Manifestações constantes, repressão violenta por parte das autoridades, um País em catarse profunda de tensões […]

Na Turquia vivem-se dias agitados.

Manifestações constantes, repressão violenta por parte das autoridades, um País em catarse profunda de tensões acumuladas e processos de mudanças mal assimiladas.

Discute-se hoje o regime político, o autoritarismo de Erdogan e a traição ao magnífico sonho de Atatürk, de uma Turquia forte, secular, dotada de uma modernidade capaz de dialogar a Ocidente e Oriente, assumindo plenamente o papel de ponte entre a Europa e a Ásia, tudo por uma aparentemente crescente imposição de um islamismo de traços fundamentalistas.

Não tenho a pretensão de me alongar sobre as questões fracturantes turcas, seja ao nível político, religioso ou futebolístico. Lá, como cá, há assuntos cuja discussão é, pura e simplesmente melindrosa. As pequenas grandes diferenças residem na impetuosidade turca, por vezes ganhando traços de fúria, e na incapacidade de distinguir os 3 tabus, tal não é a intensidade com que são vividos.

No entanto, e em jeito de declaração de interesses, confesso o meu fascínio por Istambul. É uma cidade que, ao visitar, nos faz perceber como temos saudades de uma urbe viva, ainda não sequestrada por megalómanos centros comerciais ou normalizada por grandes multinacionais, onde o comércio se faz da proximidade e da identidade e a vida se passa na rua. Não apenas é viva, como é aberta, um espaço de troca comercial e cultural, incorporando o espírito do Bósforo. É no entanto bem certo que não se deve tomar a Turquia pela sua cidade mais emblemática, pois logo ao lado, a Anatólia revela um país bem mais fechado, e uma sociedade bem mais conservadora…

De qualquer modo, para melhor perceber esta nação (na impossibilidade de a visitar, claro está), e dando azo ao pequeno Professor Marcelo que há em mim, recomendo a leitura de “Pássaros sem Asas”, de Louis de Bernières.

Independentemente de questões estruturais, penso apenas num jardim.

No jardim que originou tudo.

Já tive o privilégio de visitar Istambul, e concretamente o Parque Gezi. Trata-se de um jardim, com cerca de 6 hectares, junto a um centro nevrálgico para a dinâmica de transportes da cidade, a Praça Taksim, onde se podem apanhar todos os modos de transporte público, por onde passa toda a vida, onde existe o histórico Centro Cultural Atatürk, o Monumento da República e de onde parte, por exemplo, a vibrante rua Istiklal.

Formal e tecnicamente, não apresenta nenhum rasgo de genialidade, nenhuma exuberância criativa, nenhum traço icónico.

Apresenta, em contra-partida, a eficácia das coisas simples.

É um espaço vivido em pleno pela população, que dele desfruta das mais variadas formas, incluindo sestas profundas, em relvados à sombra de frondoso arvoredo, onde os plátanos que o dominam garantem, no mordente Verão turco, um bom par de graus centígrados de frescura adicional.

No fundo, é um espaço simbólico e de partilha social e cívica, numa cidade que muito valoriza a fruição dos seus espaços exteriores.

Face à ameaça de destruição do parque, da praça e do centro cultural, para construção de uma mesquita e de um centro comercial, a população insurgiu-se e, num acto da mais pura cidadania, uniu-se para protestar contra o sacrifício de um espaço que entendem como seu. É a recusa da troca de um símbolo cívico por símbolos religiosos e económicos. É a manifestação de uma escolha pelos valores da comunidade.

É certo que nada é tão simples como aparenta, que há muitos matizes a considerar, e que a partir desse ponto, e face à reacção das autoridades a esse exercício de cidadania, abriu-se toda uma caixa da Pandora, em torno de questões políticas e religiosas.

No entanto, fica patente o poder que a inquietação cívica tem – a tal ponto que o impossível aconteceu, e os adeptos dos três maiores clubes de bairro de Istambul (Galatasaray, Besiktas e Fenerbahçe são isso mesmo) uniram-se em torno desta causa – assim como fica demonstrada a dimensão comunitária e a expressão democrática que os espaços exteriores simbolizam. Mas apenas onde exista uma verdadeira cultura cívica.

Como diz Rod Stewart na sua canção “Young Turks”: sejam livres esta noite.

Pelos vossos jardins, sejam eles quais forem.

Em Portugal poucos querem saber deles.

Na Turquia praticamente inicia-se uma revolução por causa de um.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 

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