É preciso preservar o céu dos nossos avós

O conhecimento popular do céu que desfila sobre as nossas cabeças tem uma história longa, muito rica e valiosa. Atravessou […]

O conhecimento popular do céu que desfila sobre as nossas cabeças tem uma história longa, muito rica e valiosa. Atravessou milénios e merece ser preservada. Os nomes e delimitações científicas das constelações seguem agora critérios adotados pela União Astronómica Internacional (IAU), definitivamente aceites em 1930.

 

A longa noite dos tempos e o céu utilitário

 

A visão maravilhosa do céu noturno fascinou os povos de diferentes partes do mundo, que procuraram encontrar alguma ordem e regularidade na abóbada celeste. Esse conhecimento revelou-se essencial para a sua sobrevivência.

As migrações requeriam a orientação pelo céu, em terra ou no mar, para a escolha do rumo correto a seguir. A agricultura carecia de marcadores naturais da passagem do tempo e das estações do ano, de modo a determinar as épocas próprias para semear e para colher.

As celebrações religiosas exigiam a interpretação de fenómenos ou a marcação de datas para colher os favores dos deuses. Era pois necessário conhecer o céu para ter sucesso num mundo exigente e por vezes severo.

Fora da ciência oficial de cada época, os diferentes povos criaram as suas próprias interpretações alternativas do céu noturno.

Sentiam o firmamento próximo dos seus interesses e das suas vidas: temiam-no e admiravam-no. Assim, em diferentes lugares surgiram outras tantas interpretações para uso prático do céu noturno.

Pastores e viajantes, agricultores e aventureiros, camponeses, navegadores, caçadores e sacerdotes reuniram, à sua maneira, conhecimentos práticos que os ajudavam no dia-a-dia.

Essas formas de saber foram-se transmitindo por tradição oral e chegaram aos nossos tempos. Nomes populares como “Estrela Boieira”, “Sete-estrelo”, “Estrela do Pastor”, “Cajado”, “Cabritos”, “Três-marias”, etc., são fruto dessa necessidade de dar um sentido utilitário firmamento.

No céu dos nossos avós, viam-se milhares de estrelas de cores múltiplas e brilhos diversos, numa quantidade que parecia não ter fim, além das cinco “estrelas errantes” (os planetas visíveis a olho nu).

A poluição luminosa das vilas e cidades retirou ao céu noturno a beleza e imponência dos velhos tempos. Em larga medida, essa destruição do céu noturno deve-se à iluminação mal concebida ou mal instalada que frequentemente lança luz para cima, em vez de a dirigir para onde ela faz falta: para o chão que pisamos.

O céu que agora podemos ver das vilas e cidades não passa de uma pálida caricatura do que se observava há poucas décadas: dificilmente se poderão ver mais do que algumas dezenas de estrelas, mostrando brilhos esbatidos e tímidos, num céu acinzentado, apoucando um espetáculo que outrora foi glorioso.

Felizmente, de algumas aldeias de Portugal ainda se pode contemplar um céu grandioso, constituindo um inegável património da humanidade. Há que preservá-lo.

 

Necessidade de preservação cultural

 

Os jovens de hoje distanciaram-se das estrelas. Quase não as vêem e seguramente já não as conhecem como os seus avós.

No entanto, algumas pessoas idosas que ainda vivem nas aldeias remotas de Portugal (e de outros países, é claro) ainda conhecem as estrelas à sua maneira: aprenderam com os seus avós a identificar umas poucas por meio de nomes populares, assim como algumas “constelações alternativas” para uso utilitário, e sabem servir-se delas.

Estes são os últimos detentores desse saber prático milenar, pois os seus filhos e netos já não querem saber disso para nada. Há que recolher e preservar urgentemente esse conhecimento empírico muito curioso e interessante. Mas temos de nos apressar, pois o tempo passa rápido. Essas pessoas estão a desaparecer e os seus descendentes já nada nos podem contar.

É essencial que essa partilha de informação e colheita de depoimentos se faça perante o céu real, em diversas regiões do território português e em diferentes épocas do ano, de modo a colher e registar o conhecimento popular de múltiplas regiões de Portugal e de diferentes partes do céu.

No entanto, é preciso que as pessoas que realizem esse trabalho de campo tenham conhecimentos fundamentais de Astronomia, para poderem interpretar e cruzar conhecimentos, estabelecendo comparações válidas e claras entre os nomes e conceitos populares e os seus equivalentes na terminologia moderna.

Só assim se poderá preservar esse importante património cultural em acelerada extinção. Esperemos que muitos passos venham a ser dados para a preservação de um conjunto valioso e consistente de tradições, cuja origem e antiguidade se perdem na escuridão dos tempos. O desafio está lançado.

 

Autor: Guilherme de Almeida
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

Para identificar estrelas e constelações, segundo a terminologia atual:
Almeida, Guilherme de — “O Céu nas Pontas dos Dedos”, Plátano Editora, Lisboa, 2013.
Almeida, Guilherme de — “Roteiro do Céu”, 5.ª edição, Plátano Editora, Lisboa, 2010.

 

Legendas das Figuras:

Fig 1 – O céu estrelado sobre o santuário do Cabo Espichel, do início da Primavera. Fotografia de Miguel Claro (2010).

Fig 2 – Representação comparada da Ursa Maior, segundo Hevelius (1690), à esquerda, e de acordo com a caracterização atual. O traço ponteado indica a fronteira moderna desta constelação (Guilherme de Almeida, 1996).

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