Beta Talk: A história do novo rural e do advogado que ama o cinema

Em comum têm o facto de ambos terem largado as suas vidas e profissões anteriores e mudado até de terra. […]

Em comum têm o facto de ambos terem largado as suas vidas e profissões anteriores e mudado até de terra. Mas fizeram percursos opostos, um do Algarve para Lisboa e outro de lá para cá. Ambos em busca do seu sonho. Miguel Valverde e Rui Rodrigues foram os convidados de mais uma Beta Talk, a conversa sobre empreendedorismo empresarial que todos os meses tem lugar no Café Concerto do Teatro Municipal de Portimão.

Miguel Valverde, advogado nascido em Portimão, partiu da sua cidade natal para viver em Lisboa o sonho do cinema e hoje é um dos três organizadores de um dos mais conhecidos festivais em Portugal, o IndieLisboa, que está a decorrer por estes dias na capital.

Rui Rodrigues, 37 anos, publicitário em grandes empresas em Lisboa, um dia resolveu deixar essa vida de muito trabalho e stress, onde ganhava bem, para vir para perto do Rogil tornar-se agricultor biológico e criar a empresa agrícola Herança Rural.

Rui fez a sua formação básica em Design de Comunicação e cedo se assumiu como a «ovelha negra da família», que lhe dizia que essas coisas das artes «não dão para nada». Mas ele persistiu, começou a estudar em Belas Artes, concluiu depois no IADE, e trabalhou na série de televisão 3D «Major Alvega», na produtora Mandala (dos «Contra Informação»), antes de entrar na publicidade, onde abriu «uma brincadeira minha com uns amigos».

A «brincadeira» foi tal que, passado pouco tempo, já estava a ser convidado por uma multinacional e a ser diretor artístico de campanhas de clientes tão importantes como a Renault.

 

A crise dos combustíveis e a mudança de vida

 

Um dia, recorda, por altura da crise de combustíveis, ia para o Porto em trabalho quando a mulher lhe telefonou a dizer que, por causa disso, não tinha comida fresca em casa, nem onde a comprar, nem nada para dar à filha de ambos, ainda bebé. E aí deu-se um clique na cabeça de Rui Rodrigues: «pensei: uma pessoa pode ganhar muito dinheiro, pode ter bons carros, mas e depois a comidinha, como fica?».

«O meu sonho de criança era ter um agroturismo». Vai daí o Rui resolveu começar à procura de um monte, ao pé do mar. E lá acabou por encontrar o monte, perto do Rogil, em Aljezur, um terreno com um total de oito hectares de boa terra servida pelo perímetro de rega do Mira.

«Cedi as quotas da minha agência no dia 3 de janeiro e no dia 7 já estava a pôr um telhado no monte».

Rui Rodrigues usa um brinquinho na orelha, uma mosca de barba no queixo que lhe dá um certo ar de filósofo chinês, e conduz um jipe sempre cheio de lama. Além disso é lisboeta. Quando em 2011 aterrou no Rogil, um rapaz da cidade que queria ser agricultor mas nunca tinha posto as mãos na terra, foi visto como um maluco por quase todos.

«Ninguém me encorajou. O Grupo de Ação Local de Aljezur a primeira coisa que me disse foi: você não vai encontrar aqui ninguém para trabalhar na terra». Mas o Rui encontrou alguém, o Senhor Zé, um colaborador que tem 63 anos e é «um sábio da terra». Mais tarde começou a trabalhar com ele também o filho do Senhor Zé.

Valeu-lhe a sua maneira de ser e a amizade que logo fez com um outro agricultor, como ele também jovem e pioneiro na área da agricultura biológica, o António Rosa, que vende no mercado local, mas sobretudo «fornece restaurantes importantíssimos em Lisboa».

 

Meter as mãos na terra e criar calos

 

O monte, a casa, estava quase em ruínas e foram precisas muitas horas de trabalho duro, a criar calos nas mãos, para a pôr apresentável. A terra também exigiu muito trabalho e canseira. «Um dia, queria instalar um sistema de rega em dois hectares e pediram-me 15 mil euros. Eu não tinha, por isso montei o sistema sozinho, perdi quatro quilos no processo. Mas hoje já sei fazer uma canalização. Isto não se aprende nas universidades!».

Apostando na agricultura biológica, Rui começou a vender a sua produção a outros agricultores locais, mas depressa se dedicou a fazer cabazes de produtos biológicos que levava para Lisboa «para pagar o gasóleo» da viagem que todas as semanas faz para visitar a mulher e a filha, que permaneceram na capital.

«Nunca fiz comunicação, mas o meu conceito é “herança rural”. Se eu vendia os conceitos dos outros, quando era publicitário, também vou vender os meus».

O sucesso dos cabazes tem sido tanto, bem como de outros negócios em que se meteu, que depressa arrendou um terreno contíguo com 16 hectares, onde já se fazia agricultura biológica, e assim aumentou a área total da sua exploração.

Neste momento, a marca Herança Rural de Rui Rodrigues tem 120 clientes regulares do cabaz biológico, todos particulares e na área da Grande Lisboa, sobretudo na capital e em Almada. Ao domingo e segunda-feira, o empresário vai até lá e distribui os cabazes. O negócio tem corrido tão bem que até já tem de comprar um atrelado para o jipe.

Apesar da sua aposta na agricultura, Rui Rodrigues mantém-se ligado ao meio da publicidade, trabalhando no seu computador, à distância, e indo uma vez por semana a Lisboa. Neste momento, tem em mãos dois trabalhos de comunicação: «um agroturismo em Tavira, a Quinta dos Perfumes, que abre em junho, e uma Clínica Dentária em Faro e Olhão». É um complemento aos seus ganhos na agricultura.

 

Primeiros passos na internacionalização

 

Rui Rodrigues e a sua Herança Rural já estão até na senda da internacionalização. Tudo começou com um amigo argentino que vive em Bruxelas e que um dia lhe disse: «quero os teus produtos». «E eu respondi: ok, mando-te um cabaz. Mas ele disse-me: quero 200 toneladas de abóbora. Eh lá! Uma pessoa não está habituada a isto», conta Rui, rematando com uma gargalhada.

Hoje, Rui está envolvido num processo de exportação de abóbora e batata-doce para Alemanha, Espanha, Itália e França, no qual envolveu outros agricultores. «Ou nos unimos ou então isto não dá. Vamos lá a unir esforços e competências, cada um com as suas», salienta.

«Temos um produto ímpar em Portugal que é a batata-doce, mas só se fala do Cristiano Ronaldo. E temos a sardinha, a cavala. E fomos grandes produtores de amendoim e agora vem todo da China. Onde vamos parar?»

Com o seu amigo António Rosa, que foi pioneiro na agricultura biológica voltada para o mercado, em Aljezur, Rui começou a partilhar ideias, experiências e finalmente negócios. «Começámos no amendoim e acabámos na cenoura liofilizada».

António Rosa, que também participou na Beta Talk de março, em Portimão, deu o seu testemunho sobre o Rui, dizendo ter ficado «surpreendido pela forma como ele se conseguiu instalar tão rapidamente. É uma pessoa com força!».

«O meu percurso foi sempre contra a corrente, foi de trabalho árduo e contra a corrente», salientou ainda António Rosa, acrescentando que ele e Rui partilham «a mesma maneira de estar na terra. Temos este karma de termos de ser o veículo para passar o testemunho».
António, que também foi considerado maluco quando começou a apostar na agricultura biológica, sublinha: «como agricultor, sinto que devia ter o mesmo estatuto de um atleta de alta competição».

Quanto à sua parceria com Rui Rodrigues e à sua própria produção, voltada sobretudo para o exigente mercado dos restaurantes de alta qualidade, «neste momento não temos capacidade de resposta para a procura que temos».

Ao Rui, a família que antes achava que ele era meio louco, agora diz-lhe: «Rui tu és um visionário, viraste-te para a terra».

 

Da advocacia para o cinema

 

Miguel Valverde nasceu em Portimão, é advogado especializado em direitos de autor, faz crítica e programação de cinema, estudou argumento, criou o IndieLisboa, um dos maiores festivais de cinema do país, e é, ele próprio, produtor de filmes.

O curso foi tirado na Faculdade de Direito de Lisboa, onde Miguel, até pela ligação que desde muito jovem sentia com o cinema, se especializou numa área do Direito Civil, a dos Direitos de Autor, sobretudo aplicados ao cinema: «o filme enquanto obra feita em colaboração, entre realizador, produtor, guarda-roupa, música, etc. Todos eles são autores».

Mas, acabado o curso, voltou para Portimão, para aí exercer a sua profissão, num gabinete de advogados. E fazia de tudo: «crime, trabalho, cível». Ainda assim, manteve-se sempre ligado ao Cinema, fazendo crítica para o jornal «barlavento», onde a sua crónica semanal surgia, como recorda, «logo abaixo do Prof. Herrero». Além disso, ia a Lisboa todas as semanas às ante estreias.

Em Portimão, mais precisamente na Praia da Rocha, havia há muitos anos um festival de cinema, dedicado às curtas-metragens, o FICA, cujo diretor, o Carlos Manuel, um dia convidou Miguel Valverde para o júri e no ano seguinte para ser programador.

Depois, o escritório de advogados onde trabalhava em Portimão abriu uma filial em Paris e, numa deslocação de trabalho lá, Miguel teve a oportunidade de «ver uma retrospetiva de cinema português em França como nunca são feitas em Portugal». Foi também nessas andanças que conheceu o diretor da Cinemateca Francesa.

Durante a sua ligação ao FICA, Miguel sempre insistiu para que o festival passasse cada vez mais cinema português. E um dia, durante o seu trabalho de escolha de filmes para o festival algarvio, conheceu um macedónio que lhe disse: «és um gajo porreiro para me fazer a programação de curtas no meu festival. E eu fui para lá. No segundo ano desse festival, no dia seguinte à minha chegada rebentou a guerra entre a Albânia e a Macedónia. A minha mãe telefonava-me aflita com as notícias e eu dizia-lhe: “aqui não se nota que há guerra”. Só que estávamos a trabalhar no Ministério do Exército e o sítio onde estávamos alojados era ao lado da Embaixada dos Estados Unidos…».

 

Mudar de vida

 

No meio de tudo aquilo, Miguel começou a pensar: «isto é muito mais interessante que os problemas que eu tenho no escritório! Não é que eu não goste de advocacia. Gosto verdadeiramente e não coloco de lado que um dia volte a exercê-la. Mas pensava que no cinema havia muitos mais desafios diferentes».

Por isso, em Novembro de 2001, Miguel Valverde deixou o seu escritório e foi estudar argumento. Com a nota mais alta do curso, tirado na ETIC Formação Avançada, foi convidado para dar aulas na Restart, uma escola em Lisboa, e para trabalhar com Pedro Costa, o realizador do premiadíssimo filme «Ossos». «Era um dos meus realizadores preferidos e o meu trabalho era enviar os filmes dele para festivais e fazer as candidaturas para o ICA».

Afirmando-se como «muito teimoso», há anos que a ideia de promover um festival de cinema independente vinha germinando na sua cabeça. Com dois amigos, o Nuno Sena e o Rui Pereira, começaram a idealizar o IndieLisboa. «Cada um conhecia a sua área: eu era de Direito, o Nuno vinha das Ciências da Comunicação, e o Rui tinha estudado Gestão. Não éramos aqueles típicos malucos que tinham estudado cinema, assim umas coisas no ar. Pensámos em criar uma coisa séria desde o começo, passando o cinema que queríamos, mas comunicando com um público abrangente». E assim nasceu o IndieLisboa, em 2003.

Na primeira edição do Festival, homenagearam o Festival Sundance, o mais importante do mundo no que diz respeito ao cinema independente. «Enviámos-lhes um email a convidá-los mas pensámos: ninguém nos vai responder. Mas eles responderam que sim, vamos ao festival e fazemos uma programação para vocês. Mais tarde perguntei ao diretor do Sundance porque tinham aceite o nosso convite e ele disse que era por que o nosso website era muito giro. De facto, sempre apostámos numa comunicação cuidada e pelos vistos deu bons resultados».

Anos mais tarde, noutra edição, «convidámos o diretor do Festival de Cannes para o júri e ele respondeu a dizer: “respeito muito o IndieLisboa, é um dos meus quatro festival independentes preferidos”».

Miguel, entretanto, é também o representante em Portugal da Quinzena dos Realizadores de Cannes.

 

Dos filmes dos outros, aos seus próprios filmes

 

Depois de ter estudado argumento, Miguel teve aulas de BD e de argumento para cinema de animação na Gulbenkian. Um dia resolveu que queria escrever uma curta-metragem, mas que queria fazê-la em filme de 35 mm, «uma história toda fotografada». A sua curta foi «filmada metade no Autódromo de Portimão e metade na Islândia. O que haverá em comum entre estes dois locais?».

O filme foi selecionado para o Festival de Santa Maria da Feira, para o Panorama do Documentário em Lisboa, para o Festival de Cork, na Irlanda, Centro Pompidou, em Paris, para a Cinemateca espanhola, para Melboune (Austrália), Holanda, e ainda para o Shortcutz, em Lisboa. «E tem sido muito solicitado para ser apresentado em galerias».

Esse filme foi feito com a sua já sólida experiência como produtor: «Organizar um festival é também ser produtor. O Indie movimenta cerca de um milhão de euros».

Recentemente, o escritor Possidónio Cachapa convidou Miguel para ser ele a «produzir a sua longa metragem», estando agora o produtor a «tentar encontrar meios de financiamento para isto tudo».

«Desde que deixei a advocacia, nunca deixei de de dar aulas de direitos de autor. É uma área sempre em alteração, para mais agora com todas as questões levantadas pela internet. Nunca vou deixar de ser jurista, embora continue a fazer aquilo que mais gosto, que é tudo oq ue tem a ver com o cinema».

 

O sonho impossível de um festival de cinema no Algarve

 

Provando mais uma vez que «santos da casa não fazem milagres», a festival que Miguel Valverde tentou organizar com regularidade na sua terra natal de Portimão morreu ao fim de duas edições. Tratava-se do festival «Visões do Sul», que «ligava Manuel Teixeira Gomes, o seu percurso de viagens e a sua obra literária, para com isso construir uma programação».

«Com grande pena minha», o festival acabou. Mas isso não aconteceu por falta de qualidade ou de interesse do público, mas…por falta de dinheiro da Câmara de Portimão. Só se fizeram duas edições, e na primeira a Câmara ficou a dever «imenso dinheiro», enquanto a segunda «motivou um processo judicial para receber», que ainda não está concluído.

O FICA, entretanto, já tinha morrido há mais tempo, o que leva Miguel Valverde a lamentar que no seu Algarve um festival de cinema não consiga vingar. «O problema é que, quando havia dinheiro, ninguém acreditava, e agora…».

Para compensar esse desgosto, o IndieLisboa, cuja 10ª edição está a decorrer até 28 de abril, em vários espaços da capital, continua a revelar-se um sucesso, de público, de crítica, de inovação, com programação para todos as idades e públicos variados.

Para manter esse festival de pé, mesmo em ano de grande contenção financeira, Miguel Valverde e os seus colegas organizadores desdobram-se, ao longo do ano, em contactos com empresas e patrocinadores. Mas parte importante do financiamento vem mesmo do Programa Media, que apoia apenas 20 festivais em toda a Europa, sendo um deles o Indie.

O Indie até já teve uma extensão em Portimão, mas, recorda Miguel Valverde, «a Câmara ficou a dever-nos». Ou seja, não será tão cedo que Miguel pensará em mais aventuras no Algarve.

 

Nova Beta Talk é hoje

 

A Beta Talk de Março foi assim sobre a história de um novo rural e de um advogado que ama o cinema. O que têm em comum estes dois empreendedores? Como resumiu Salomé Cabrita, responsável pela organização da Beta Talk por parte da Câmara de Portimão, no fim da sessão, têm em comum «teimosia, ousadia, partilha, parceria». E, porque não dizê-lo?, uma certa dose de loucura.

Hoje, dia 16 de abril, a partir das 19h00, no Café Concerto do TEMPO – Teatro Municipal de Portimão volta a receber mais uma Beta Talk, desta vez tendo como convidados Ricardo Alves Mariano (SW- Sucess Work) e Daniel Machado (Ecoceanus), que irão partilhar os seus trajetos, num ambiente informal e descontraído que reflete o espírito Beta Talk. A entrada é livre, mas a inscrição deve ser feita aqui.

 

 

Fotos de: Cris Costa – etic_algarve

 

 

Comentários

pub