Palavra do dia: embuste

A televisão portuguesa (os media em geral, mas a televisão em particular) tornou-se especialista na auto-promoção, levando-a, muitas vezes para […]

A televisão portuguesa (os media em geral, mas a televisão em particular) tornou-se especialista na auto-promoção, levando-a, muitas vezes para lá dos limites do razoável.

Sócrates é um produto televisivo, sempre foi. O que a RTP fez, ajudada pelos demais órgãos de comunicação social e embalada pelas redes sociais, foi pegar nesse produto e vender-nos o antigo Primeiro-Ministro até à exaustão, ultrapassando o que o bom senso sugeriria como suficiente. Nós comprámos. Resultou. Costumamos fazer mais ou menos o mesmo na altura das eleições.

A entrevista do renascido começou por ser um exercício de vitimização, comportamento no qual Sócrates sempre foi especialista. Usou, contudo, a auto-flagelação como mote para o contra-ataque. Fica claro que Sócrates usará o espaço mediático da estação pública, nos comentários semanais que vai protagonizar, para um ajuste de contas (com a atual situação, com a Presidência da República e até com o partido rosa) e uma resposta às críticas de que tem sido alvo desde que saiu do Governo.

Torna-se óbvio que o antigo líder político está desalinhado com a estratégia que tem sido seguida pelo Partido Socialista de António José Seguro. Por várias vezes, Sócrates referiu-se a uma “narrativa sem oposição”.

E quando questionado diretamente se estava a falar para o Rato, não conseguiu mais do que atabalhoar uma resposta de aparente compreensão da linha seguida à crítica pela não defesa do passado governativo.

Sem surpresas, o ex-Primeiro-Ministro continua a negar qualquer responsabilidade na atual situação do pais, apesar de “assumir todas as responsabilidades” da sua governação.

Numa retórica sem grandes novidades – o que prova que nos dois últimos anos, e não obstante toda a filosofia que terá estudado, José Sócrates não acrescentou nenhuma humildade (ou bom senso) ao seu pensamento – chutou para a frente, repetiu que fez tudo o que podia ser feito e que a conjuntura internacional esteve na origem da atual situação nacional.

Ficamos a saber que, uma troika depois, não houve uma gestão eleitoralista das contas públicas (engenheiro dixit) quando, em 2009, o mundo (a tal crise internacional contra a qual a economia portuguesa estava blindada) dava sinais evidentes de colapso financeiro e, obviamente, económico.

A partir de agora, concorde-se ou não, ache-se ou não uma desfaçatez, a maioria e Passos Coelho, em particular, mas também Cavaco Silva, têm a oposição que faltou durante a primeira metade do mandato. Para o moderado (para não dizer frouxo) PS de Seguro – talvez mais até do que para a coligação – esta é a pior das notícias.

José Sócrates é, em muitos anos, o político que, de longe, melhor domina o poder da comunicação. Tem uma capacidade discursiva rara e, com aquele ar grave (e um olhar de “ai, ai, ai, só dizes asneiras”) que usa para dizer tudo, seja “o Presidente da República não tem nenhuma autoridade moral para falar de lealdade institucional” ou “eu gosto de mangas no Verão”, dá a volta a qualquer dupla de entrevistadores (a quem faltou em capacidade de desconstruir o pensamento do entrevistado o que sobrou em vontade de protagonismo).

A entrevista teve mais de uma hora. Poderia ter tido cinco minutos: embuste; negação; embuste; Cavaco, o patife; embuste; crise internacional; embuste. Não é qualquer um que consegue enrolar dois jornalistas ao longo de 90 minutos, sem se comprometer uma única vez.

É para mim evidente que Sócrates vai voltar à primeira linha da política nacional (voltou já?). Tem uma agenda política que não quis revelar (e que não passa necessariamente por Belém, que lhe deve parecer um bocejo), mas que é confirmada pelo vigor com que a nega.

Bem-vindos ao circo. Vai ser ainda mais divertido a partir de agora.

 

Autor: Nuno Andrade Ferreira, jornalista

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